CRISPR: O método que revolucionou a terapia gênica

CRISPR
CRISPR

CRISPR, traduzido como Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas, é um mecanismo de defesa presente em bactérias e arqueias que possui uma função similar a de uma tesoura.

Ele é capaz de utilizar uma enzima cas para clivar o material genético de invasores em locais específicos. Seu uso é diversificado e permitiu uma revolução dentro da engenharia genética sendo aplicado não só como terapia gênica no tratamento de doenças de diversas origens, como também em processos de otimização na agricultura e pecuária.

Alvo de críticas e elogios dentro da comunidade científica, o CRISPR ganhou uma visibilidade especial após o anúncio do nascimento dos primeiros bebês alterados geneticamente. A possibilidade de selecionar características de uma pessoa através da edição do material genético de um embrião reacendeu o debate ético sobre os perigos da manipulação gênica.  

A partir do momento em que o DNA foi comprovado como responsável pela capacidade de carregar nossas informações e repassá-las para os nossos descendentes, a pergunta central dos estudos genéticos se tornou “Se o ser humano for capaz de modificar seu genoma, estaria ele apto para prevenir e curar doenças de forma definitiva? Se sim, seria possível repassar para as próximas gerações esta característica adquirida?”

A terapia gênica surgiu para responder a essa pergunta através da tentativa de aprimoramento genético pela correção de regiões do genoma humano. A princípio, o foco estava em resolver doenças hereditárias monogênicas, ou seja, que apresentavam alteração em apenas um gene.

Dessa forma, o conhecimento de maior importância para realizar uma edição gênica de sucesso era saber o seu gene alvo e o mecanismo de melhor efeito.

Para as doenças multifatoriais, onde a causa pode estar relacionada não só a um conjunto de genes mas também a fatores epigenéticos e ambientais, os tratamentos são mais complexos e estão em constante evolução. Atualmente o tratamento para o câncer é o maior alvo dos estudos de terapia gênica especialmente no uso do mecanismo CRISPR-Cas.

Pesquisadores se deparam com mecanismo de origem desconhecida

Em 1987 um estudo focado na descrição de um gene da bactéria Escherichia coli observou dentro do material genético sequenciado a presença de regiões repetitivas intercaladas com regiões variáveis espaçadoras. Esta característica nunca foi observada anteriormente e foi recebida com surpresa pelos pesquisadores que, com acesso limitado às técnicas de sequenciamento, não conseguiram inferir sua importância na época. Com o avanço e expansão dos estudos de genômica, estas regiões começaram a ser identificadas em diferentes grupos de bactérias e arqueias, aumentando a curiosidade da comunidade científica que a nomeou de diversas formas até escolher o nome CRISPR (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats)

A genômica comparativa permitiu que os pesquisadores identificassem genes adjacentes às regiões de CRISPR chamadas de cas (“CRISPR associated genes”) com  função referente ao metabolismo de DNA. Ao observar a região CRISPR e suas enzimas associadas em uma gama variada de microorganismos, uma hipótese começou a ser levantada: Estaria essa região presente em diversos procariotos como parte de um mecanismo de defesa?

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Descoberta da CRISPR-Cas como mecanismo de sistema imune adaptativo

A descoberta que reacendeu o interesse e iniciou uma onda de estudos voltada para o mecanismo CRISPR-Cas ocorreu em 2005 quando, de forma independente, os pesquisadores Francisco Mojica e Christine Pourcel observaram que as regiões espaçadoras que se encontravam entre as regiões repetitivas eram homólogas às sequências de bacteriófagos, vírus capazes de infectar bactérias.

 Neste estudo também foi identificada a ocorrência de uma resposta imune de memória. Ou seja, quando a bactéria é infectada por um vírus, o seu material genético entra em contato com o CRISPR e um fragmento dele é incorporado. A partir desse momento, infecções pelo mesmo vírus não são mais observadas naquela bactéria.

Com a intenção de confirmar a hipótese de que CRISPR-Cas representava um mecanismo de imunidade, um estudo realizado em 2007 inseriu a sequência de um vírus na região espaçadora do CRISPR presente em Streptococcus thermophilus e observou que a partir daquele momento ela se tornou resistente ao vírus correspondente.

Neste momento diversos estudos estão sendo realizados no desenvolvimento do mecanismo de CRISPR-Cas9, no entanto, o que já foi comprovado cientificamente é que a endonuclease Cas9 recebe o auxílio de RNAs associadas ao CRISPR que reconhecem o material genético exógeno e sinalizam para a enzima iniciar o processo de clivagem.

Em 2012 foi submetida a primeira patente para uso da tecnologia de CRISPR-Cas9 e o início de sua comercialização foi focada no aprimoramento de sementes e plantas na agricultura. Somente em 2013 que o mecanismo passou a ser utilizado para edição do genoma de humanos com estudos que comprovaram que a atividade enzimática ocorria de forma similar em células de mamíferos.Desse momento em diante os olhos se voltaram para as consequências desse tratamento mas,principalmente, para as possibilidades e os diversos caminhos que ele abria no que diz respeito às formas de terapia gênica.

Novidades no uso do CRISPR para edição gênica

Em novembro de 2018 o pesquisador chinês He Jiankui anunciou que os primeiros bebês alterados geneticamente nasceram saudáveis. A notícia foi uma surpresa para o mundo pois as leis referentes à edição gênica são rigorosas e estudos relacionados a terapia gênica demoram anos para serem desenvolvidos. Grande parte dos ensaios não atingem os resultados necessários para conseguir sair das primeiras fases de segurança.

Com o objetivo de imunizar as crianças contra o HIV, doença que o pai carregava, o médico realizou edição de genes com CRISPR-Cas9 e fertilização in vitro. Apesar dos recem nascidos serem saudáveis, o experimento foi mal visto pela comunidade científica e caracterizado como criminoso devido aos riscos impossíveis de prever que uma alteração no genoma pode causar.Em 2019 o pesquisador foi condenado a prisão e pagamento de multa por realizar manipulação genética de forma ilegal e negligente, o que mostrou para o mundo a importância de estudos feito de forma responsável e consciente.  

Estudos identificaram que alterações na estrutura do DNA tem a capacidade de gerar células com atividades distorcidas, essas células se tornam então a origem da doença considerada o mal do século, o câncer. Quando os mecanismos de edição gênica começaram a ser descobertos e desenvolvidos, a associação entre o defeito genético causador do câncer e a capacidade de alterar um DNA foi instantânea.

Não foi diferente com o método CRISPR-Cas9, que vem sendo utilizado para diferentes estudos no tratamento do câncer e, recentemente, teve um ensaio focado na melhoria da atividade anti tumor de células T através de edição gênica aprovado pela FDA (“Food and drugs Administration”).

Os primeiros resultados referentes a esse ensaio foram publicados em 2020 e identificaram que não houve consequência negativa para os pacientes tratados. Ainda não foi possível chegar ao processo de cura,no entanto, a capacidade de realizar a edição ex vivo aumentou a segurança no que diz respeito às preocupações referentes aos danos não planejados que o CRISPR-Cas pode gerar. Esse e outros estudos voltados para terapia gênica são uma fonte de esperança para o combate aos processos de metástase e formação de células cancerígenas.

Recentemente o mecanismo CRISPR-Cas também virou uma alternativa para o tratamento do vírus HIV.Em 2020 foi publicado um estudo que combinou o tratamento do antiviral LASER ART com a técnica de CRISPR-Cas em camundongos com células humanas infectadas com o vírus do HIV. Esse estudo descreveu que após o tratamento combinado  não foi observada a passagem de partículas virais através de profagos e que não foi encontrado o vírus nos órgãos do camundongo. Este pode ser um dos primeiros passos para uma erradicação definitiva do vírus, no entanto, ainda estamos longe de chegar lá e muitos estudos precisam ser realizados especialmente no que diz respeito às consequências deste tratamento quando praticado em um ser humano.  

Obstáculos encontrados na terapia gênica

Apesar do mecanismo CRISPR ser estudado em larga escala, existem obstáculos no seu uso para serem ultrapassados. Existe uma dificuldade na transferência do DNA para dentro das células dos pacientes e não necessariamente a expressão gênica será duradoura após uma inserção eficiente.

No entanto, um dos maiores debates relacionado ao uso de crispr-cas no tratamento de doenças são os riscos de efeitos colaterais.Todo o corpo humano é interligado e qualquer alteração em seu genoma que ocorra de forma não prevista pode piorar uma doença em questão, assim como causar graves consequências na saúde e no desenvolvimento do paciente.

Conselhos de bioética evidenciam a importância no controle dos estudos utilizando edição gênica para que não sejam impostos riscos desnecessários a nenhum paciente e para que as práticas de manipulação não seja direcionada para fins de alterar características estéticas ou raciais.

Importância da comunidade científica para o avanço de tecnologias na terapia gênica

O mecanismo CRISPR-Cas9 ainda está em processo de desenvolvimento, no entanto é claro perceber como sem a revolução da tecnologia e do investimento em técnicas de sequenciamento não seria possível avançar de maneira tão eficiente.

Podemos estar a um passo de encontrar a cura para doenças que hoje em dia ainda não conseguimos tratar. A comunidade científica tem papel fundamental na função de enriquecer o debate sobre todas as diversas possibilidades do CRISPR-Cas9 assim como estipular o limite que deve ser dado para que o cuidado seja sempre sua prioridade.

Referências

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