Diagnóstico de doenças raras por sequenciamento genômico

Entenda mais sobre o projeto Genomas Raros e os principais objetivos do sequenciamento genômico no diagnóstico de doenças raras.
genomas raros

O sequenciamento genômico para o diagnóstico de doenças raras ganhou ainda mais espaço pois, recentemente, o Projeto Genomas Raros lançou seu novo site. Periodicamente vamos trazer posts sobre diversos temas relacionados com o projeto em si, doenças raras e genômica humana.

Neste artigo, vou falar sobre o potencial do sequenciamento genômico para o diagnóstico de doenças raras contando o caso de um menino americano, e como pretendemos fazer o mesmo para muitos outros brasileiros.

O caso de Nicholas Volker

Nicholas Volker é um jovem adulto que nasceu em outubro de 2004 no Wisconsin, nos Estados Unidos da América. Ele era saudável até completar dois anos de idade. Nesse período, seu crescimento desacelerou e exames médicos revelaram que ele desenvolvia fístulas em seu sistema digestório: feridas que formam canais entre regiões do corpo que normalmente são separadas.

Devido à microbiota intestinal, as fístulas repetidamente infeccionavam. Nicholas precisou ser alimentado por sondas para não morrer de inanição.

Os médicos que atenderam Nicholas jamais haviam visto tal condição antes. Testes genéticos para doenças conhecidas voltaram com laudo negativo. Ninguém conseguiu diagnosticar Nicholas por vários anos.

Em 2009, Nicholas pesava menos de 10 kg, já havia passado por mais de 100 cirurgias (algumas para remover boa parte de seu intestino grosso) e ao todo já havia passado mais de 300 dias hospitalizado.

A luz no fim do túnel

Quando tudo parecia estar perdido para Nicholas Volker, um dos médicos que o atendia soube que uma universidade de Wisconsin estava planejando realizar um projeto que envolvia o sequenciamento do exoma de alguns indivíduos.

O exoma corresponde à parte do nosso genoma que possui a instrução para fabricar as proteínas que mantêm nossas células vivas e funcionando. Ele então imaginou que os resultados poderiam ajudar a entender a condição de Nicholas.

exoma para diagnostico de doenças raras

Já que os testes genéticos vieram negativos, o sequenciamento de partes do genoma ainda não examinadas do menino poderiam trazer respostas.

E foi exatamente isso que aconteceu: o resultado do sequenciamento do exoma de Nicholas revelou variantes em oito genes candidatos que talvez pudessem estar envolvidos na fisiologia da doença misteriosa de Nicholas.

Entre os oito genes, estava o XIAP. A revisão do conhecimento científico disponível à época sinalizou que mutações no XIAP estão associadas com doenças autoimunes.

A importância do sequenciamento para diagnóstico de doenças raras

Os cientistas envolvidos no sequenciamento do exoma de Nicholas então concluíram que o caso de Nicholas era, na realidade, uma versão nunca antes vista de uma doença previamente conhecida.

O gene XIAP está localizado no cromossomo X e codifica uma proteína envolvida em vários processos celulares. Uma de suas funções é regular a multiplicação de células do sistema imune na resposta a infecções virais.

No caso de Nicholas, ele possuía uma variante (mutação) genética que resultou numa troca de aminoácido, mais precisamente o 203º aminoácido da proteína. A versão normal da proteína possui uma cisteína nessa posição (códon TGT).

Nicholas, no entanto, herdou de sua mãe uma alteração de único nucleotídeo que levou a uma mudança para uma tirosina (códon TAT). Indivíduos do sexo masculino normalmente possuem um cromossomo X e um Y. Portanto, a única cópia disponível do XIAP de Nicholas é alterada.

Essa troca aparentemente inofensiva fazia com que Nicholas produzisse número anormalmente grandes de células T, células B e macrófagos, levando a uma condição inflamatória excessiva, causando danos a tecidos. No caso de Nicholas, a inflamação desenfreada prejudicou as células intestinais, levando às fístulas que o afligiram durante anos.

Diagnóstico de doenças raras associado a tratamentos

Com a noção de que a doença intestinal de Nicholas Volker, que demorou anos para ser diagnosticada, era na realidade uma doença autoimune, os médicos cogitaram realizar um transplante de medula óssea. Encontraram um doador compatível com Nicholas, e como o(a) doador(a) possuía uma versão normal do XIAP, poderia ajudar.

Em 2010 ele recebeu o transplante de células de cordão umbilical. Nos dois anos seguintes, Nicholas já estava bem melhor: voltou à escola e conseguia se alimentar com mais variedade sem mais sofrer com as dolorosas fístulas intestinais.

Sua história é comumente dita como o primeiro exemplo prático do potencial do sequenciamento genômico para o diagnóstico de doenças raras novas.

O Projeto Genomas Raros e o sequenciamento genômico

Uma das metas do Projeto Genomas Raros é fazer para milhares de brasileiros com suspeita de doenças raras o que o sequenciamento do exoma fez por Nicholas Volker: ajudá-los a chegar em um diagnóstico.

O caso do menino americano é bem ilustrativo da chamada odisseia diagnóstica: pode levar anos e muitas consultas com vários profissionais diferentes até que alguém acometido por uma doença rara encontre um diagnóstico.

Infelizmente, nem todas as doenças genéticas/raras possuem cura ou tratamento disponível. No entanto, para que um dia tenhamos tratamentos para elas, precisamos conhecer a prevalência das doenças raras no nosso país e as variantes genéticas responsáveis.

No Genomas Raros, sequenciamos não só o exoma, mas sim o genoma completo dos indivíduos convidados para o projeto. Evidências apontam que a chance de obter um diagnóstico com genoma completo é melhor quando comparada com sequenciamento de exoma.

Sequenciar o genoma completo não é garantia de um diagnóstico, mas ele possui uma grande vantagem: com a evolução do conhecimento científico, os geneticistas podem retornar à sequência completa para revisar um laudo previamente negativo e quem sabe chegar a um diagnóstico definitivo.

Cerca de 40% dos pacientes do Genomas Raros possuem até 14 anos de idade. Quando lembro do caso que relatei nesse post, também penso nesses milhares de brasileirinhos e brasileirinhas e em suas famílias, e de como o sequenciamento genômico oferecido pelo Projeto pode ajudá-los a chegar a um diagnóstico, como no caso de Nicholas Volker.

Autor: Antonio Coelho

Antonio Victor Campos Coelho é Biólogo e Doutor em Genética pela Universidade Federal de Pernambuco e atualmente é Pesquisador de Pós-Doutorado pelo Projeto Genomas Raros. Possui experiência em análise de dados, estatística e bioinformática aplicados em Genética Humana.

Referências

LEWIS, R. Human Genetics: Concepts and Applications. McGraw-Hill Education, 2017.

MEDLINE PLUS. XIAP gene: conditions. Disponível em: <https://medlineplus.gov/genetics/gene/xiap/#conditions>. Acesso em: 21 jul 2022.

MEDLINE PLUS. X-linked lymphoproliferative disease. Disponível em: <https://medlineplus.gov/genetics/gene/xiap/#conditions>. Acesso em: 21 jul 2022.

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