Bioética e dilemas éticos: Entenda e aplique na área de genética

Você talvez conheça a bioética, mas sabe quais são alguns de seus dilemas presentes na genética? Entenda!
bioetica ilustração de biopesquisador

O avanço das ciências da saúde e suas técnicas sempre esteve permeado por dilemas éticos e de bioética. São eles que possibilitam, em parte, boas práticas clínicas e laboratoriais, pois o questionamento sobre o que devemos fazer está sempre acompanhado do questionamento sobre o que não devemos fazer.

Um termo latino comumente citado para o debate é o seguinte:

“Primum non nocere”
(“Primeiro, não causar dano”)

Este aforismo, frequentemente atribuído a Hipócrates, enuncia o princípio da não maleficência, que ocupa uma posição importante nas discussões sobre a conduta ética no campo da genômica e da genética como um todo. Este é um dos quatro princípios da bioética que serão tratados na seção a seguir.

O que é um dilema ético? E bioética?

Para entendermos um dilema, façamos primeiramente uma reflexão sobre o conceito de “ética”. 

Muitas vezes a ética é mal compreendida como uma virtude que está presente em algumas pessoas e ausente em outras. Na verdade, a ética é um termo que abrange a reflexão de todos os valores morais, como princípios, normas, direitos e deveres, que orientam o comportamento de um indivíduo.

Sendo assim, afirmar que “Fulano não tem ética” é impreciso, uma vez que todos os indivíduos direcionam suas ações a partir de seus valores morais e das normas legais às quais estão submetidos, e, de alguma forma, refletem sobre eles.

É importante destacar que ética e moral são conceitos relacionados, mas também distintos.

A ética diz respeito ao estudo/reflexão do conjunto de princípios e valores que orientam o comportamento humano em sociedade, enquanto a moral se refere aos costumes, valores e juízos emitidos por um indivíduo ou grupo social. A moral pode ser influenciada por fatores culturais, religiosos ou filosóficos e é utilizada para distinguir o “bem e o mal”, o “certo e o errado”.

Dilema ético bioética

O estudo da ética normativa (aquela preocupada com a conduta e não com a descrição dos valores morais) possui três teorias de interesse para a área da saúde:

  • A deontologia, que argumenta que a conduta adequada deve ser derivada de um conjunto de regras a serem seguidas, independentemente das consequências. Ou seja, uma ação é considerada moralmente correta se for feita de acordo com um conjunto de princípios éticos estabelecidos.
  • O consequencialismo, que define o “correto” a partir dos efeitos produzidos por um determinado comportamento. Uma ação é considerada moralmente correta se produzir mais benefícios do que danos para a maioria das pessoas envolvidas.
  • O utilitarismo, cujo argumento argumenta que a quantidade de bem-estar gerado por uma ação é o principal fator a ser considerado para determinar sua adequação moral. De acordo com o utilitarismo, quanto maior o bem-estar produzido, mais adequada é uma atitude.

Entretanto, a consciência e as interações sociais humanas formam sistemas complexos, nos quais o “certo” nem sempre surge de maneiras óbvias. 

Em muitas ocasiões dois valores podem entrar em conflito, sem que se excluam, quando precisamos determinar uma conduta. Esses conflitos são chamados de dilemas. Um experimento mental conhecido como “dilema do bonde” pode ser utilizado para ilustrar essa situação:

  • Um bonde está descarrilhado e, ao longo de seu trilho, existem cinco pessoas incapazes de se mover. Um observador qualquer está diante de uma alavanca que, caso seja ativada, muda o percurso do bonde para um trilho onde existe somente uma pessoa, também incapaz de se movimentar. Portanto, existem duas opções:
    a) Deixar o bonde seguir o trilho no qual já está e atropelar cinco pessoas.
    b) Tomar partido da situação e ativar a alavanca para que o bonde entre no trilho alternativo.
Dilema ético
Figura 1: Ilustração do Dilema do Bonde. Fonte: Wikimedia Commons (2018)

Existem diferentes respostas possíveis a esse dilema, incluindo uma perspectiva utilitarista que argumentaria que, ao sacrificar uma pessoa no lugar de cinco, uma quantidade maior de bem-estar estaria sendo produzida. No entanto, uma resposta deontológica poderia argumentar que provocar a morte de uma pessoa contradiz princípios legais ou um direito natural de viver.

Questões assim são complexas e ocorrem cotidianamente dentro das ciências biológicas e das ciências da saúde. De maneira prática, muitas das condutas que um dia já foram praticadas por profissionais da saúde são consideradas, hoje, eticamente condenáveis. 

Exemplos dessas violações foram descritas no Código de Nuremberg, surgido para confrontar a condução de ensaios clínicos desumanos praticados durante o período da Alemanha nazista, e no Relatório Belmont, construído após um estudo sobre os efeitos da sífilis não tratada, no qual 400 pessoas foram diagnosticadas com a doença mas não receberam o tratamento adequado, não consentiram em fazer parte do estudo e nem sequer foram informadas sobre a infecção.

Tais experiências deram corpo para um ramo da ética preocupado exclusivamente com questões envolvendo as ciências biológicas e as ciências da saúde, a chamada bioética.

Embora a bioética não seja deontológica em um sentido estrito, uma de suas bases é o estabelecimento de princípios norteadores da conduta que, embora sejam tópico de discussão, geralmente são divididos em quatro:

1. Princípio do respeito à autonomia

Todos os agentes envolvidos devem ser capazes de tomar decisões voluntárias e baseadas em informações corretas. Esse é o princípio responsável pelo chamado “consentimento esclarecido”. 

2. Princípio da não-maleficência

Este princípio diz respeito à não criação de danos aos indivíduos envolvidos na situação, no quais os danos podem ser gerados a partir da comissão como também da omissão (imperícia, imprudência e negligência).

3.Princípio da benevolência

Profissionais da saúde têm como dever gerar benefícios ao indivíduo, minimizando ou removendo riscos. É esse princípio que oferece garantias a um paciente de que, ao procurar um profissional da saúde, o objetivo deste será ajudar.

4.Princípio da justiça  na bioética

Apesar de ser o princípio com mais campo para discussão, esse princípio geralmente se configura sob a ideia da equidade e da justiça distributiva, na qual indivíduos iguais devem ser tratados de maneiras iguais. 

Da mesma maneira devem existir critérios para se determinar e justificar o tratamento diferente entre indivíduos diferentes.

Dadas as considerações, tentemos entender alguns dos dilemas com que cientistas se deparam ao trabalhar com genômica e como a bioética pode os ajudar a tomar as melhores decisões éticas possíveis.

Quais são alguns dos dilemas bioéticos envolvidos no sequenciamento genético?

Os serviços clínicos e as pesquisas genômica revolucionaram a biologia. Atualmente, é difícil pensar em muitos aspectos da saúde humana sem levar em conta o que a genômica tem a nos dizer. Exemplos não faltam e muitas vezes envolvem temas que até meio século atrás eram um grande mistério para a humanidade, como as doenças raras, o câncer e também o mundo microscópico.

Estes benefícios, entretanto, trazem consigo alguns dilemas envolvendo a privacidade e o consentimento dos sujeitos, a divulgação dos resultados e mesmo a natureza coletiva dos dados (um diagnóstico envolvendo o genoma de um indivíduo só pode ser feito ao compará-lo com outro).

Imaginemos uma situação hipotética na qual um bebê tem seu genoma sequenciado com o intuito de se investigar uma deficiência intelectual. Ao receber os resultados, o médico se depara com uma mutação no gene BRCA1, que é traduzida em um risco aumentado para o câncer de mama.

Nessa situação, uma mastectomia preventiva pode não ser a melhor alternativa, visto que os riscos de um câncer metastático surgir antes dos próximos vinte ou trinta anos são baixos e o indivíduo em questão é um bebê, que não terá condições de consentir para tal procedimento.

No entanto, a não intervenção pode ser vista como negligência, já que existe a possibilidade de desenvolvimento de câncer de mama durante a juventude e possibilidade de óbito em decorrência da condição.

Por outro lado, a intervenção pode resultar em iatrogenia, em função do estigma gerado em torno da mastectomia e do potencial de gerar consequências negativas na saúde emocional e física da paciente.

Evidentemente, esses dois desfechos são extremos, e talvez outras condutas possam ser adotadas neste caso. No entanto, o experimento mental tem seu valor por apresentar um dilema ético cujas respostas podem ser variadas.

Diante desses dilemas, a decisão deve ser cuidadosamente ponderada, levando em consideração os princípios éticos da autonomia, não-maleficência, benevolência e justiça, bem como as particularidades do caso em questão.

Uma segunda situação envolve os dados obtidos a partir do sequenciamento do genoma completo. Esses dados não necessariamente fornecem resultados exclusivamente sobre o indivíduo do qual o DNA foi obtido, de tal modo que podem existir ali informações sobre familiares próximos também.

Em um contexto de pesquisa, quais seriam as obrigações do pesquisador com os familiares deste sujeito de pesquisa?

Ainda que um sujeito de pesquisa, ao consentir a investigação de seu próprio genoma, possa ser entendido sob uma ótica individual, as informações obtidas podem não ser estritamente privadas.

É certo que terceiros não podem ser classificados como sujeitos de pesquisa e que a obtenção de dados coletivos, ainda que digam respeito a eles, não é capaz de identificá-los por si só. Entretanto, a identificação de indivíduos a partir de seus genomas, no contexto contemporâneo, pode ser apenas uma questão de grau.

Os bancos de dados de empresas que trabalham com sequenciamento genético podem ser utilizados para estabelecer ligações entre dados ‘crus’ e indivíduos. Quais são os deveres de um pesquisador ou mesmo de um clínico nessa situação?

Informar terceiros sobre uma condição patológica ou um risco é uma espécie de sobrediagnóstico e violação da privacidade? Ou talvez não informar seja negligente e gere subdiagnóstico?

Por fim, outro dilema bioético envolvendo o sequenciamento genético parte do uso de dados de uma pesquisa em outra, não relacionada. Mesmo que o uso secundário de dados seja bastante comum, nem sempre ele é consentido pelo sujeito do qual o dado foi obtido.

Por outro lado, nos casos em que o sujeito consente aos termos de uso secundário de seus dados, nem sempre é possível que o pesquisador restrinja ou saiba exatamente para quais fins investigacionais tais informações serão utilizadas, de tal modo que novos objetivos possam causar desconforto aos sujeitos de pesquisa originais, mesmo que tenham consentido com isso.

Dessa maneira, o consentimento geral impõe uma dúvida sobre o próprio conceito de consentimento informado. Seria possível que uma pessoa desse, de maneira esclarecida, consentimento para algo sobre o qual ela não tem informações suficientes?

Quais medidas podem ser tomadas para minimizar o risco?

Com o avanço das tecnologias no campo da genética, tal como o NGS, o custo de sequenciamento de um genoma inteiro diminui juntamente com o tempo necessário para se ter acesso à uma quantidade de informações genéticas sobre diferentes indivíduos.

Essas tecnologias trazem consigo benefícios inegáveis para o diagnóstico, o tratamento e a pesquisa em genética, entretanto, eles são acompanhados de dilemas da bioética que nem sempre podem ser resolvidos de maneiras evidentes.

O exercício de responder a um dilema se torna mais fácil ao se utilizar diretrizes. O estabelecimento de condutas padronizadas pode tornar o exercício clínico (bem como a pesquisa) mais adequado às normas já estabelecidas hoje.

Alguns autores sugerem que o consentimento de um sujeito de pesquisa seja dado somente depois que ele discuta os termos deste consentimento com seus familiares.

No entanto, essa abordagem pode ser problemática, já que nem todos os sujeitos de pesquisa podem ter familiares próximos ou podem não querer discutir assuntos privados com eles. Além disso, o consentimento informado deve ser dado pelo próprio indivíduo e não por terceiros.

Para minimizar os riscos envolvidos em pesquisas genômicas em humanos, os pesquisadores devem garantir sua própria integridade profissional, adotando diretrizes éticas claras e seguindo as regulamentações existentes.

Além disso, políticas públicas podem ser desenvolvidas para controlar esses riscos, envolvendo agências reguladoras, comitês de ética em pesquisa e conselhos profissionais na criação de mecanismos de consentimento apropriados.

O processo de divulgação de informações obtidas a partir do DNA de um indivíduo deve ser feito com cautela e por profissionais treinados na área.

É importante que os sujeitos de pesquisa sejam informados claramente sobre o objetivo da pesquisa e como suas informações genéticas serão utilizadas. É também possível que um indivíduo opte por não receber os resultados do teste genético, e essa escolha deve ser respeitada pelos pesquisadores.

Ainda assim, o pesquisador pode se sentir moralmente (embora não tenha obrigação legal) compelido a informar o sujeito de pesquisa sobre algum resultado, desde que tenha certeza sobre a validade dos dados e sobre as implicações na saúde e no bem-estar do indivíduo.

De todo modo, sejam quais forem as implicações éticas que a genômica guarda para o futuro, seus dilemas só poderão ser trabalhados com base nos princípios éticos fundamentais da bioética, visando sempre o bem-estar e a proteção dos sujeitos de pesquisa, bem como dos pacientes envolvidos.

Referências

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