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A alteração do material genético em regiões codificantes pode levar a condições genéticas irreversíveis. Quando a mutação acontece em genes que codificam proteínas musculares, o resultado pode ser a ocorrência de distrofias musculares com diferentes graus de acometimento. Variantes gênicas que possam estar envolvidas no desenvolvimento de distrofias musculares podem ser descobertas ou confirmadas logo após o parto através da análise genética com o uso de marcadores moleculares específicos.
Variabilidade genética e evolução
A variabilidade genética é responsável pela evolução de todos os organismos. Indivíduos com genótipos iguais, ou seja, sem variabilidade genética, podem não sobreviver diante de uma mudança ambiental.
Basta lembrar de tragédias agrícolas como o cancro cítrico, que devastou produções de laranja; ou a “vassoura de bruxa”, que prejudicou muitos produtores de cacau e, mais recentemente, uma praga que acabou com uma das poucas fontes de sustento das famílias que habitam a zona da caatinga no Nordeste: uma cactácea conhecida como palma.
É devido a variabilidade genética populacional que certas pessoas são naturalmente imunes ao vírus HIV, ao novo coronavírus e a diversos outros patógenos. No caso do COVID-19, dependendo da pessoa infectada, pode ser assintomático ou extremamente vulnerável, passando por respostas intermediárias.
A variabilidade genética é de suma importância, mas também pode trazer condições genéticas desfavoráveis e até ligadas a doenças. Mutações podem envolver genes, ou mesmo um só gene, e comprometer o funcionamento normal de um organismo, prejudicando o genótipo portador. Basta a alteração de um simples nucleotídeo, conhecida como mutação de ponto, em áreas específicas do DNA, para o surgimento de um genótipo predisposto a quadros patológicos. Muitas patologias possuem elo com fatores genéticos, as distrofias musculares são exemplos.


O que são distrofias musculares?
As desordens musculares podem ser subcategorizadas em miopatia, quando a condição é restrita ao músculo sem anormalidade estrutural no nervo periférico, e neuropatia – ou desordem neurogênica – a qual a fraqueza muscular é secundária a alteração do nervo periférico, ou seja, da ponta anterior da medula até a junção neuromuscular. Ambas subcategorias podem se subdividir em adquirida ou hereditária, crônica ou aguda.
As distrofias musculares de Duchenne e de Becker são as miopatias hereditárias mais comuns. As demais são caracterizadas, em geral, conforme o grupo muscular mais acometido. O primeiro caso descrito de distrofia muscular nos remete a década de 1830, ao anatomista, cirurgião e fisiologista escocês Sir Charles Bell. O termo “distrofia” origina-se do grego dys – “difícil” – e trof(o) –“nutrição”, “crescimento” ou “desenvolvimento”. Sir Bell é considerado por muitos o fundador da neurologia clínica.
Além de Bell, o médico inglês Edward Meryon também foi um estudioso das distrofias musculares, inclusive estudando casos daquela que viria a ser conhecida, anos depois, como distrofia muscular de Duchenne. Foi o francês Guillaume-Benjamin Amand Duchenne o primeiro a fazer a descrição mais completa, até então, da distrofia que leva seu nome.
Em 1957, o médico alemão Peter Emil Becker alterou a classificação vigente descrevendo uma variante menos severa de distrofia muscular de Duchenne que, a partir de então, passou a levar seu nome. Somente em 1986 o gene responsável por essas distrofias foi identificado, sendo sua forma recessiva responsável pelas doenças. No ano seguinte, 1987, foi identificada a proteína distrofina em meninos afetados.
As distrofias musculares são causadas por mutações em genes ligados à síntese de proteínas musculares. Estas compõem uma categoria de patologias neuromusculares relacionadas a uma progressiva fraqueza e desintegração da musculatura esquelética com o tempo. Estas diferem entre si nos seguintes aspectos:
- Musculatura principal afetada;
- Grau de enfraquecimento;
- Velocidade de progressão da enfermidade;
- Faixa etária em que os sintomas se iniciam;
- Incapacitado de caminhar (comum é em muitos casos);
- Alguns tipos de distrofias também se relacionam a problemas em outros órgãos.
Tipos de distrofias musculares
O grupo de distrofias musculares é composto por mais de trinta enfermidades genéticas categorizadas, sendo os tipos principais: Distrofia Muscular de Duchenne; Distrofia Muscular de Becher; Distrofia Muscular do tipo Cinturas; Distrofia Muscular Facio-Escápulo-Umeral; Distrofia Muscular Miotônica de Steinert e Distrofia Muscular Congênita. As distrofias musculares são detectadas e avaliadas através de exames envolvendo marcadores moleculares, eletromiografia (EMG), biópsia muscular e da determinação de enzimas musculares (principalmente, creatinofosfoquinase – CPK).
- Distrofia Muscular de Duchenne (DMD) e Distrofia Muscular de Becker (DMB): Tanto a distrofia muscular de Duchenne quanto a de Becker, forma alélica menos severa da primeira, são causadas por mutações no gene DMD, responsável por codificar a proteína distrofina e localizado no cromossomo X. A distrofia muscular de Duchenne é a mais comum, e possui frequência de 1 a cada 3.500 indivíduos. Patologias atreladas ao cromossomo X são mais comuns em homens por estes serem portadores de apenas um cromossomo X. Mulheres são afetadas em casos muito particulares. A distrofia muscular de Becker é 10 vezes menos frequente, começa a se manifestar por volta dos 7-10 anos de idade e, como a distrofia muscular de Duchenne afeta na maioria homens.
- Distrofia Muscular do tipo Cinturas: possui caráter progressivo com grande variabilidade genética, acometendo homens e mulheres, igualmente. Caracteriza-se por fraqueza e atrofia musculares com predomínio das cinturas pélvica e escapular. O começo das manifestações clínicas, pode ocorrer no primeiro ano de vida ou até em 10 anos. Quanto ao grau de comprometimento motor, há também grande variedade , podendo se apresentar de forma mais grave – próximo ao apresentado na distrofia muscular de Duchenne – quanto leve, sem prejudicar as atividades cotidianas. São as proteínas específicas deficientes: calpaína, fukutina, disferlina, teletonia e sarcoglicanas.
- Distrofia Muscular Fácio-Escápulo-Umeral (FSH): A incidência desta distrofia é de 1:20.000 nascimentos de ambos os sexos. Entre as distrofias musculares, caracteriza-se por ser um dos tipos mais benignos e o terceiro de maior ocorrência. Embora na adolescência seja mais frequente, manifesta-se a qualquer momento da vida. A distrofia muscular fácio-escápulo-umeral relaciona-se ao comprometimento muscular próxima à cintura escapular (braços e ombros) e da musculatura facial, sendo tal comprometimento leve e com evolução lenta da enfermidade. O portador apresenta apenas dificuldade de fechar os olhos, abrir e fechar a boca, sorrir e assobiar, pouco comprometendo suas atividades diárias.
- Distrofia Miotônica de Steinart (DMS): É a forma mais corriqueira na vida adulta de distrofia muscular. O cenário clínico inicia-se com miotonia cuja característica peculiar é a dificuldade de relaxar o músculo depois de uma contração muscular vigorosa. Por exemplo, quando o portador segura fortemente um objeto e, no momento de soltá-lo, há dificuldade de abrir os dedos. Tardiamente, demonstra fraqueza muscular, além do comprometimento de outros sistemas, como o visual, cardíaco, tegumentar e endócrino. Assim, pode causar catarata, cardiomiopatia, calvície, hipogonodismo e diabetes, respectivamente. O envolvimento da musculatura esquelética é difuso com repercussão nos músculos faciais, do pescoço, braços e pernas.
- Distrofia Muscular Congênita (DMC): Patologia caracterizada por ser degenerativa, primária e progressiva do músculo esquelético com início intra-útero ou durante o primeiro ano de vida, causada pela deficiência da proteína específica chamada merosina. Além de comprometimento muscular notado desde o nascimento, com hipotonia, atrofia e fraquezas musculares estacionárias ou com mínima progressão. Também apresenta retrações musculares progressivas e diminuição/ausência dos reflexos tendinosos. A fraqueza predomina a porção próxima às cinturas pélvica e escapular, além de comprometer músculos paravertebrais, cervicais, mastigatórios e da face. A incidência da distrofia muscular congênita é de 1:60.000 ao nascimento e de 1:100.000 na população geral. Atualmente há 4 entidades aceitas desse tipo de patologia:
- DMC clássica ou pura – O sistema nervoso central não é comprometido e a inteligência é normal;
- DMC tipo Fukuyama – Demonstra deficiência mental e sistema nervoso central alterado;
- Síndrome Muscle Eye-Brain – Presença de defeitos oculares e quadros muscular e mental graves;
- Síndrome de Walker Walburg – Deficiências oculares estão presentes juntamente de deficiência mental e alterações cerebrais.
Devido ao fato de serem causadas por mutações em genes ligados a produção de proteínas que compõe a musculatura, as distrofias musculares não possuem cura, mas sim tratamentos. Estes incluem exercícios de fisioterapia e até o uso de medicamentos (compostos anabólicos, anti-inflamatórios, antioxidantes e antifibróticos). Os tratamentos tem como objetivo reduzir as incapacidades, prevenir complicações, prolongar a mobilidade e, por fim, melhorar a qualidade de vida do paciente. Existem também terapias experimentais, inclusive com células tronco.
Referências
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