Doenças Cardiovasculares Hereditárias: conheça as principais

Entenda o papel da hereditariedade em algumas das principais doenças cardiovasculares.
doença cardiovascular

Mais de 22.000 variantes genéticas são conhecidas, tanto em regiões codificantes quanto em regiões não codificantes. Muitas delas são consideradas patogênicas, ou seja, capazes de causar diversas doenças, entre elas as doenças cardiovasculares hereditárias.

Quer conhecer as doenças cardiovasculares hereditárias? Acompanhe o texto para descobrir o que e quais são alguns dos principais distúrbios desse tipo. Além disso, também falamos sobre os genes relacionados a eles e como a medicina de precisão pode atuar nestes casos.

O que são doenças cardiovasculares?

As Doenças Cardiovasculares são aquelas que afetam os vasos sanguíneos e/ou o coração. Conjuntamente, elas são consideradas a causa número 1 de mortes globais, levando a vida de aproximadamente 18 milhões de pessoas por ano, superando até mesmo o câncer neste aspecto.

Em geral, a susceptibilidade às doenças cardiovasculares é gerada em função de hábitos como o sedentarismo, o tabagismo, o uso de álcool e também por dietas pouco saudáveis. Além disso, os fatores genéticos também possuem um papel importante no desenvolvimento destas doenças.

Doenças cardiovasculares podem ser hereditárias?

Algumas doenças cardiovasculares podem ser herdadas, sendo classificadas como Doenças Cardiovasculares Hereditárias. Essas doenças podem ter um padrão de herança autossômico dominante e serem causadas por uma única mutação gênica.

O advento das tecnologias de sequenciamento permitiram a formação de associações entre determinadas variantes genéticas e traços específicos, inclusive doenças. Com isso, hoje são conhecidas variantes ditas patogênicas (ou provavelmente patogênicas) capazes de influenciar o desenvolvimento de cardiomiopatias e de outras doenças cardíacas.

Como a significância clínica de variantes genéticas é descrita? Descubra!

Estas variantes genéticas capazes de aumentar a predisposição a (e mesmo de causar) doenças cardiovasculares, podem ser adquiridas ou herdadas

As variantes adquiridas são chamadas de somáticas, ou seja, que ocorrem em células somáticas e não são transmitidas. Já as variantes herdadas, são chamadas de variantes germinativas, ou seja, que ocorrem em células envolvidas na reprodução.

Com isso, é importante notar que nem toda doença cardiovascular é hereditária, ainda que muitos dos mecanismos relacionados com seu desenvolvimento possam ser profundamente genéticos. 

Em geral, doenças cardiovasculares são multifatoriais e a herança genética é um dos diversos fatores que propiciam o surgimento delas. Vale a máxima de que o fenótipo de uma pessoa é o resultado de suas características genéticas dentro do contexto de um ambiente.

Além disso, muitas destas doenças ocorrem mediante o acúmulo de danos gerados por mais de uma variante genética (traço poligênico), embora algumas delas possam ser causadas por uma única variante (traço monogênico).

Doenças Cardiovasculares Hereditárias

Tendo em vista a grande diversidade de etiologias e manifestações clínicas das doenças cardiovasculares hereditárias, é possível afirmar que aquelas causadas pela disfunção de um único gene são as mais simples do ponto de vista causal.

Nestes casos, uma única mutação é capaz de impactar a função/produto de um gene com tamanha significância que o aumento da predisposição à doença provavelmente levará ao desenvolvimento da mesma. Este tipo de variante é dita como sendo de alta penetrância.

Mais de 40 doenças cardiovasculares hereditárias já foram descritas como condições monogênicas ou mendelianas. Ou seja, doenças que se manifestam em função de variantes genéticas em apenas um gene.

Apesar disso, variantes genéticas com tamanho de efeito tão grande são menos comuns que aquelas tipicamente envolvidas na constituição de traços poligênicos (mais de um gene). 

Dessa forma, doenças cardiovasculares são mais comumente causadas pela soma de centenas ou milhares de variantes genéticas com tamanho de efeito pequeno para este tipo de doença, mas que também podem ser herdadas.

Além disso, estas variantes podem ter expressão variável, o que novamente coloca em evidência a importância dos modificadores ambientais, como a dieta. Estes modificadores podem atuar em união com os determinantes genéticos, afetando positiva ou negativamente o desenvolvimento de uma doença cardiovascular

Vejamos na sequência algumas das mais importantes categorias de doenças cardiovasculares hereditárias.

Cardiomiopatias

Cardiomiopatias são doenças da musculatura cardíaca (miocárdio), cujos danos gerados culminam na remodelação do órgão. Em geral, cardiomiopatias geram hipertrofia ou a distensão do miocárdio.

Embora estas modificações morfológicas possam acontecer por meio de mecanismos compensatórios, as cardiomiopatias são mais prevalentemente causadas por mutações genéticas adquiridas ou herdadas.

As Cardiomiopatias Hipertróficas são as doenças cardiovasculares monogênicas de maior prevalência (1:500). Quando em sua forma hereditária, ela atinge mais de uma pessoa da mesma família por meio da transmissão de variantes genéticas.

Na maior parte dos casos, tais variantes genéticas patogênicas (ou provavelmente patogênicas) afetam a função normal de genes relacionados à produção de proteínas sarcoméricas.

O que são sarcômeros?

Os sarcômeros são as unidades proteicas funcionais básicas de todos os tecidos musculares. São eles que permitem o movimento das fibras musculares durante as contrações da sístole e da diástole (saída e entrada de sangue nos ventrículos, respectivamente).

Variantes genéticas patogênicas e provavelmente patogênicas presentes neste tipo de gene são encontradas em cerca de 60% dos casos de cardiomiopatia hipertrófica. Alguns dos genes que encodam proteínas sarcoméricas relacionadas ao desenvolvimento e progressão das cardiomiopatias hipertróficas são:

  • MYH7 (cadeia pesada da miosina);
  • MYBPC3 (proteína C ligante de miosina);
  • TNNI3 (troponina cardíaca I);
  • TNNT2 (troponina cardíaca T);
  • ACTC1 (alfa-actina do músculo cardíaco);
  • MLY2/MLY3 (miosina de cadeia leve).
O sarcômero é a unidade funcional dos tecidos musculares

A perda de função destes genes também cumpre papel importante no desenvolvimento das cardiomiopatias dilatadas familiares. Nestes casos, normalmente caracterizados pela dilatação e disfunção sistólica do ventrículo esquerdo, variantes genéticas também podem afetar genes relacionados à Linha-Z do sarcômero, como:

  • ZASP;
  • TCAP;
  • BAG3;
  • FLNC.

Cardiopatias Congênitas

Também chamadas de Defeitos Congênitos do Coração (DCC), as Cardiopatias Congênitas são anormalidades do desenvolvimento cardiovascular durante o período embrionário. Dessa forma, esse grupo de doenças gera problemas funcionais/estruturais que podem se manifestar desde a gestação até a vida adulta. 

Embora as cardiopatias congênitas possuam diferentes apresentações clínicas, elas são a causa mais comum de anomalias congênitas, sendo observadas em cerca de 1% de todos os nascidos vivos.

Além de serem encontradas em ~10% dos casos de natalidade prematura, as cardiopatias congênitas são, coletivamente, a principal causa de morte neonatal, sendo identificadas em aproximadamente 4% de todos os casos do tipo.

O avanço da fisiologia e das técnicas cirúrgicas no último século permitiu que muitas das pessoas com DCCs vivessem com boa qualidade e expectativa de vida. Ainda, o mesmo pode ser dito sobre a genética, que em virtude das tecnologias de Sequenciamento Nova Geração (NGS), continua a identificar genes (e variantes genéticas) implicados em cardiopatias congênitas.

O defeito do septo atrial é uma das formas mais prevalentes de cardiopatias congênitas

Em geral, as cardiopatias congênitas ocorrem de forma isolada, ainda que cerca de ⅓ dos casos ocorram como componentes de síndromes genéticas. Na prática, o médico se utiliza da examinação física, do histórico familiar, de exames de imagem, testes genéticos e outras formas de investigação laboratorial para realizar o diagnóstico.

A testagem genética, em especial, fornece ao clínico um corpo de informações altamente específicas que, aliadas a outras características, permite o estabelecimento de estratégias clínicas direcionadas para cada caso.

Alguns dos genes, cujas variantes genéticas patogênicas estão implicadas nos defeitos congênitos do coração são os listados a seguir, em conjunto com o tipo de anomalia associada:

  • ACVR2B (Transposição das grandes artérias, inversão ventricular);
  • CRELD1 e GDF1 (Defeito do septo atrioventricular, dextrocardia);
  • HAND1 e GJA1 (Coração esquerdo hipoplástico);
  • NKX2.5, CITED2, GATA4 e TBX20 (Defeitos do septo);
  • GATA4, JAG1 (Tetralogia de Fallot).

Arritmias hereditárias

Arritmias são disfunções cardiovasculares caracterizadas por anomalias do ritmo cardíaco. De forma coloquial, arritmias são distúrbios relacionados aos batimentos do coração.

Quando hereditárias, as arritmias comprimem um grupo de manifestações clínicas chamadas coletivamente de canalopatias. Nestes casos, as arritmias são causadas por variantes alélicas de genes relacionados à constituição ou função de canais proteicos que regulam a atividade elétrica do coração, como os de cálcio, sódio e potássio.

Variantes alélicas de genes que encodam canais iônicos são a causa das canalopatias (ou arritmias hereditárias)

Segundo Mazzanti e Priori, em 2020, quando as arritmias não são causadas por anomalias morfológicas do coração, as arritmias manifestam-se principalmente sob as formas de Taquicardias e Fibrilações ventriculares.

O conjunto das arritmias constitui-se de forma heterogênea, de tal forma que os fenótipos observados podem ser bastante distintos. Estes distúrbios afetam cerca de 1 em 1000 pessoas, ainda que algumas formas de canalopatias, como as síndromes do intervalo QT, sejam ainda mais raras.

Com ocorrência geralmente monogênica, as arritmias hereditárias estão associadas ao ganho ou a perda de função dos seguintes genes, que em homeostase atuam na regulação dos canais de cálcio/sódio/potássio (gene-fenótipo associado):

  • KCNQ1 – LQTS e SQTS;
  • KCNH2 – LQTS e SQTS;
  • SCN5A – LQTS;
  • KCNJ2 – SQTS;
  • CACNA1C – SQTS
  • CACNB2 – SQTS

Os exames genéticos, assim como em outras condições cardiovasculares hereditárias, são fundamentais para a estratificação de risco das canalopatias. Por meio deles, médicos podem realizar prognósticos e estabelecer estratégias de profilaxia com maior precisão quando em comparação com os parâmetros clínicos e eletrocardiográficos isoladamente.

Isso se mostra particularmente útil sob a luz da informação de que estes distúrbios são responsáveis por ⅓ de todas as mortes súbitas em jovens cuja morfologia cardíaca aparenta ser “normal”.

Hipercolesterolemia Familiar

Uma Hipercolesterolemia Familiar é um distúrbio hereditário no qual a concentração plasmática do colesterol de baixa densidade (ou LDL, coloquialmente chamado de “colesterol ruim”) é anormalmente elevada (dislipidemia).

O excesso de LDL na corrente sanguínea faz com que ele seja depositado entre as túnicas (camadas) dos vasos sanguíneos, em um processo conhecido por aterosclerose. Eventos deste tipo são marcados pelo aumento do risco para Doença Arterial Coronariana e também para o Infarto Agudo do Miocárdio.

Variantes alélicas do gene do receptor de LDL e do gene B100 (que codifica a apolipoproteína B) são as mais comumente encontradas nestes casos. Adicionalmente, os seguintes genes também são encontrados em casos desse distúrbio, que se apresenta de forma autossômica dominante:

  • PCSK9 (pró-proteína convertase subtilisina/Kexina tipo 9);
  • Super família de genes CYP;
  • LDLrAP1 (proteína adaptadora do receptor de LDL).

Os estudos de biologia molecular que elucidaram a existência e a função de genes deste tipo permitiram, no passado, a criação dos inibidores da HMG -CoA, uma estatina utilizada no tratamento da hipercolesterolemia. 

Além disso, as investigações genéticas são fundamentais para o diagnóstico dessa condição que, em indivíduos homozigóticos para os alelos dos genes anteriormente citados, pode causar a Doença Arterial Coronariana (e suas complicações) antes mesmo dos 20 anos.

Em termos epidemiológicos, a prevalência da hipercolesterolemia familiar é de cerca de 1 em 200-300 pessoas, o que se reflete em cerca de 200 mil mortes anuais associadas com o distúrbio em todo o mundo.

Prevenção de doenças cardiovasculares hereditárias

A hereditariedade das doenças cardiovasculares não pode ser prevenida, ainda que em alguns países os Testes Genéticos Pré-Implantacionais possam ser usados para minimizá-la.

O desenvolvimento destas doenças, entretanto, pode ser minimizado com mudanças comportamentais, como a prática de exercícios físicos e dietas balanceadas. Além disso, o aconselhamento genético pode trazer grandes benefícios na prevenção destas doenças, especialmente quando se suspeita do histórico clínico familiar.

Com a abordagem da medicina de precisão, cardiologistas, geneticistas e equipes multiprofissionais são capazes de elaborar estratégias terapêuticas e de profilaxia específicas para cada caso. 

Em muitos casos, como colocado anteriormente, as pessoas descobrem que possuem variantes genéticas relacionadas às doenças cardiovasculares hereditárias apenas em estágios avançados da doença.

Dessa forma, cuidados gerais com a saúde e o acompanhamento médico regular são a melhor forma de cuidarmos de nosso organismo, protegendo-o não apenas das doenças cardiovasculares mas também de outras doenças crônicas.

Referências

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