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A hemofilia é o distúrbio mais comum da hemostasia. Neste conjunto de doenças, que afetam cerca de 400.000 pessoas no mundo, problemas relacionados à coagulação resultam em episódios hemorrágicos de severidade variável.
Ficou interessado? Continue a leitura! Em nosso texto falamos sobre a relação entre a hemostasia e as hemofilias, aspectos genéticos por trás da doença, diagnóstico e tratamento.
Princípios da hemostasia
Para entendermos os mecanismos fisiopatológicos da hemofilia, é necessário primeiramente relembrar alguns conceitos relacionados à hemostasia. Suponha um corte estéril em seu dedo que resultou no extravasamento do sangue.
A primeira reação do organismo diante de tal situação é a vasoconstrição. Na sequência, as plaquetas são “atraídas” para o local do ferimento através de substâncias liberadas durante o rompimento das túnicas (camadas) que formam os vasos sanguíneos, em um processo chamado de quimiotaxia.
Ao chegarem ao local de extravasamento sanguíneo, um mediador químico (fator de von Willebrand) permite a formação de um “tampão” plaquetário, capaz de conter temporariamente o sangramento. Em seguida, mais plaquetas são recrutadas por quimiotaxia (mediada principalmente por tromboxanos) para realizar a agregação plaquetária.e dar continuidade na formação do tampão (hemostasia primária).
Uma vez formado o tampão, inicia-se o processo de coagulação sanguínea. Neste, uma cascata (sequência) de reações enzimáticas, mediadas por substâncias (fatores) presentes no sangue em sua forma inativada, resulta na formação de um coágulo de fibrina (cascata de coagulação sanguínea e hemostasia secundária).
Este coágulo de fibrina, portanto, é o que “sela” o extravasamento sanguíneo enquanto o tecido é restaurado adequadamente por meio da cicatrização, que envolve fibroblastos e a deposição de colágeno no local do corte.
É importante notar, ainda, que a cascata de coagulação pode ser iniciada pela via extrínseca ou intrínseca, a depender do contexto. No caso ilustrado acima, onde o dano é causado por um agente externo, a formação do coágulo de fibrina ocorreria mediante a ativação da via extrínseca.
Por fim, como veremos na sequência, a via intrínseca é ativada com o contato do colágeno com a camada mais interna dos vasos sanguíneos, a túnica íntima ou endotélio.
Hemofilia: O que é?
As hemofilias são doenças (coagulopatias) hereditárias caracterizadas pela deficiência total ou parcial de determinados fatores da coagulação sanguínea. Quando não tratadas, as hemofilias podem resultar em sangramentos espontâneos ou prolongados.
Isso significa que pessoas com hemofilia enfrentam dificuldades com a hemostasia secundária, o que se traduz em episódios de hemorragia externa ou interna, cuja frequência e intensidade variam conforme a severidade do caso.
Na hemofilia A, afetados são acometidos pela deficiência do fator intrínseco de coagulação VIII, enquanto na hemofilia B, há a deficiência do fator intrínseco de coagulação IX. Nesse sentido, a depender da severidade do caso, não há ativação do Fator X pela via intrínseca.
Em termos de sintomas, a hemofilia A e a hemofilia B apresentam-se de forma semelhante, com sangramento prolongado após lesões e hematomas frequentes. A gravidade dos sintomas varia de pessoa para pessoa e depende do nível de atividade do fator de coagulação deficiente.
No entanto, em geral, a hemofilia A é considerada mais comum e mais grave do que a hemofilia B. A hemofilia A é diagnosticada em cerca de 80% dos casos de hemofilia, enquanto a hemofilia B é responsável pelos outros 20% e é considerada mais branda, embora haja discordâncias em relação a essa afirmação.
Além disso, os sintomas da hemofilia A tendem a ser mais graves, com mais episódios de sangramento espontâneo em articulações e músculos, enquanto na hemofilia B os sangramentos espontâneos são menos frequentes e geralmente menos intensos.
Causas Genéticas da Hemofilia:
As hemofilias são doenças hereditárias ligadas ao cromossomo sexual X. Dessa forma, homens tendem a ser afetados de maneira mais severa pelas hemofilias, dado que possuem apenas uma cópia do cromossomo X.
Posto de outra maneira, mulheres desenvolvem a hemofilia somente nos casos em que recebem dois alelos defeituosos do gene F8 ou F9 e, portanto, na maioria dos casos atuam apenas como portadoras da variante genética.
Ou seja, filhos de mulheres portadoras possuem 50% de chance de herdar a condição, ao passo que filhas de um homem afetado com certeza serão portadoras da variante causal. Além disso, filhos de mulheres afetadas com certeza serão afetados pelas doenças.
Em termos moleculares, os genes F8 (citobanda Xq27) e F9 (citobanda Xq28) encontram-se mutados nas Hemofilias A e Hemofilia B, respectivamente. As variantes observadas para estes genes são diversas e incluem inserções/deleções (inclusive em sítios de splicing) e podem ser missense ou nonssense.
Diagnóstico da Hemofilia
O diagnóstico da hemofilia é realizado por avaliações clínicas e laboratoriais, além da investigação familiar. A correta identificação da hemofilia é essencial para que indivíduos afetados recebam o tratamento específico adequado.
A hemofilia pode ser identificada antes, durante ou após a gestação, a depender de aspectos como aqueles presentes no histórico familiar. No primeiro caso, a candidata à gestação pode realizar testes genéticos para saber se é portadora de mutações nos genes F8 e F9.
Durante a gestação, o diagnóstico pode ser realizado por intermédio das técnicas de amniocentese e amostragem vilo-coriônica, capazes de amostrar material com conteúdo genético, que pode ser posteriormente analisado por NGS, PCR, cariotipagem e microarray.
Após o período pré-natal, o diagnóstico é realizado levando-se em conta os resultados da contagem de plaquetas, o tempo de protrombina (TP) e o tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa).
Além disso, a genotipagem molecular é utilizada na avaliação da severidade da condição e, portanto, o aconselhamento genético para tal é recomendado para pessoas com hemofilia ou com casos de hemofilia na família e que queiram ter filhos.


Tratamento da Hemofilia
Não há cura para a hemofilia, entretanto, os tratamentos são eficazes na manutenção da qualidade de vida, permitindo ao paciente levar uma vida normal e saudável.
O tratamento da hemofilia envolve a reposição dos fatores de coagulação deficientes. A terapia de reposição é feita com a administração intravenosa destes fatores, que podem ser obtidos a partir do plasma humano ou produzidos por tecnologia recombinante.
A terapia de reposição deve ser feita de forma profilática ou sob demanda, a depender da gravidade da doença e do histórico de sangramentos do paciente. Dessa forma, na terapia profilática, são administradas doses regulares dos fatores de coagulação para prevenir sangramentos, enquanto na terapia sob demanda, a reposição é feita apenas quando ocorre um sangramento.
Adicionalmente, outras terapias medicamentosas podem ser utilizadas no manejo da hemofilia. Dentre elas, destaca-se o ácido tranexâmico, que atua inibindo a dissolução do coágulo, e a desmopressina, um análogo sintético da vasopressina, que age aumentando os níveis endógenos do Fator VIII.
Atualmente, pesquisadores buscam por terapias alternativas para a hemofilia, sendo as terapias gênicas grandes candidatas para tal. Essa terapia consiste na introdução de um gene funcional para o fator de coagulação ausente ou deficiente no paciente, o que é feito por meio de vetores virais que carregam o gene, os quais são administrados por via intravenosa.
É importante lembrar que o tratamento da hemofilia deve ser individualizado para cada paciente e que o acompanhamento médico regular é fundamental para o monitoramento da terapia e prevenção de complicações.
Conclusão
A hemofilia é uma doença hereditária que afeta a coagulação sanguínea e é caracterizada pela deficiência total ou parcial de determinados fatores da coagulação. Isso resulta em dificuldades com a hemostasia secundária, levando a episódios de hemorragia externa ou interna, cuja frequência e intensidade variam conforme a severidade do caso.
Esta é uma doença genética ligada ao cromossomo X e afeta principalmente homens, embora mulheres também possam ser afetadas. A gravidade da hemofilia varia conforme o nível de atividade do fator de coagulação deficiente.
Os testes genéticos são aliados da medicina de precisão e ferramentas utilizadas no aconselhamento genético para determinar a severidade da doença, o prognóstico, tratamento e acompanhamento de cada caso de hemofilia de maneira individualizada.
Referências
World Federation of Hemophilia. Guidelines for the management of hemophilia, 3rd ed., 2020.
Marchesini E, Morfini M, Valentino L. Recent Advances in the Treatment of Hemophilia: A Review. Biologics, 2021.
Mehta P, Reddivari AKR. Hemophilia. StatPearls Publishing, 2023.