Os eventos da COVID-19 causados pelo vírus SARS-CoV-2 enfatizam a importância do monitoramento de organismos de risco pandêmico. Entre eles, o vírus da Influenza é considerado o mais popular, responsável por quatro pandemias no último século.
Existem diferentes gêneros do Influenza (A, B, C e D), sendo o A e B os principais responsáveis por infecções em humanos. A infecção do vírus leva a febre, tosse, dor de garganta, dores no corpo, fadiga e, em alguns casos, pode levar a pneumonia causada pelo vírus ou secundária por patógenos oportunistas.
Influenza A e B
O genoma do Influenza A e B é composto em 8 fragmentos de RNA. Dois desses fragmentos codificam as proteínas de superfície Hemaglutinina (HA) e Neuraminidase (NA). Ambas as proteínas são alvos da resposta imunológica do hospedeiro, tornando-as as mais variáveis proteínas do vírus (principalmente a HA). Mutações ocorridas na HA e NA são acumuladas ao longo do tempo, possibilitando escape imunológico e a contínua circulação do vírus em uma população. Esse evento é chamado de drift antigênico.
O Influenza A possui 18 subtipos de HA e 11 de NA, sua caracterização se dá conforme cada subtipo presente no vírus (como por exemplo H3N2). O Influenza B por outro lado é dividido em apenas duas grandes linhagens, Yamagata e Victoria. Circulam hoje em humanos o H1N1, H3N2 (ambos Influenza A) e ambas as linhagens de Influenza B
O genoma segmentado do vírus é uma característica importante que contribui para eventos de recombinação. Posto de outra forma, em uma infecção, o Influenza libera seu material genético dentro da célula para produção de novas proteínas, replicação do seu genoma e posterior montagem de novos vírus. No evento de uma infecção por dois vírus da Influenza, dois A ou dois B, fragmentos de um podem ser montados com os de outro, formando um vírus diferente. Esse fenômeno é chamado de shift antigênico.
Ao contrário do Influenza B que infecta quase exclusivamente humanos, o Influenza A possui um agravante, que é a grande quantidade de hospedeiros passíveis de infecção, variando entre animais silvestres como aves migratórias, a animais domésticos como porcos e galinhas.
A característica segmentada do genoma do Influenza A, somada a sua variabilidade genética e vasta quantidade de hospedeiros, gera alta probabilidade de eventos de shift antigênico, resultando em diferentes vírus da Influenza. A diferença está no quebra-cabeça antigênico, cujas reorganizações garantem que o hospedeiro não terá uma memória imunológica eficiente para inibir a infecção. Se esse novo vírus possuir capacidade de disseminação alta e as infecções não forem monitoradas e contidas, esse patógeno pode gerar uma pandemia.
Pandemias de Influenza
Desde o século XX, quatro pandemias causadas pelo Influenza A ocorreram. A primeira foi a chamada “Gripe Espanhola” em 1918, a maior pandemia ocasionada pelo vírus já documentada. Estimam-se pelo menos 50 milhões de mortes devido a infecção por um H1N1 de origem suína. O vírus circulou até 1957, onde um evento de recombinação na Ásia ocorreu entre o H1N1 e três segmentos do genoma de um Influenza aviário, resultando no H2N2, chamado “Gripe Asiática”.
A emergência do Influenza H2N2 causou mais de 1 milhão de mortes e substituiu o H1N1 circulante. O vírus H2N2 circulou sozinho até 1968, quando outro evento de shift antigênico, entre H2N2 e dois segmentos genômicos de um Influenza aviário em Hong Kong, levou o surgimento do Influenza H3N2 e assim como o H1N1, o H2N2 foi substituído pelo H3N2 que circula até hoje e leva a epidemias sazonais.
Em 1977, um H1N1 reemergiu, similar ao que circulava na década de 1950 antes do surgimento do H2N2. A infecção do H1N1 reemergente era mais restrita a jovens, devido à memória imunológica ao H1N1 de 1950 dos indivíduos mais velhos. Diferente dos outros subtipos, o H3N2 não foi substituído pelo H1N1, e ambos circularam até 2009. Nesta época, um outro evento de recombinação ocorreu no México entre Influenzas humano, suíno e aviário gerando outro H1N1 (Influenza A H1N1pdm09) que contabilizou aproximadamente 285 mil mortes em um ano.
O Influenza H1N1pdm09 substituiu o H1N1 e circula junto com o H3N2 até hoje, estes são dependentes de eventos de drift antigênico para contínua infecção. Eventos de shift antigênico também ocorrem, como documentado em um estudo de Potter. Juntamente com o Influenza B, o número de mortes por Influenza chega a 500 mil/ano.


Infecções sazonais
Além das pandemias e de infecções sazonais, outros subtipos de Influenza A também causam surtos locais, em especial os vírus da Influenza aviário. Os subtipos de Influenza aviário H5 (Como H5NX) e H7 (como H7NX) são os mais associados a infecções humanas, principalmente criadores de granjas, e possuem uma taxa de mortalidade de 40 a 60%. Diferentes subtipos de HA e NA já foram detectados em humanos como H7N7, H5N1, H7N3, H9N2, H10N7, H10N8 e mais recentemente H10N3 reportado na China em junho de 2021
Os casos são raros e isolados, com baixa probabilidade de infecções entre humanos devido particularmente a diferença de receptores dos hospedeiros. O vírus da Influenza aviário requer o receptor celular alfa-2,3 AS (ácido siálico) para infecção, enquanto humanos possuem alfa-2,6 AS em células ciliadas do trato respiratório superior e alfa-2,3 AS no trato respiratório inferior. Porém já foi documentado que poucas substituições de aminoácidos na hemaglutinina são o suficiente para uma transmissão por aerossol em modelos animais (furões), indicando também a transmissibilidade em humanos.
As características genômicas juntas ao histórico pandêmico mostram a importância do monitoramento genético do vírus em humanos e em animais para uma rápida identificação e contenção de surtos capazes de somar casos e mortes em uma velocidade similar ao SARS-CoV-2. A vigilância genômica deste vírus também contribui para o desenvolvimento de novas drogas e vacinas, o que em última análise, pode ser determinante no controle e minimização de danos causados por futuras pandemias.
Sobre o Autor
Erick Gustavo Dorlass é graduado em Ciências Biológicas e mestre em Microbiologia pela Universidade de São Paulo. Hoje é doutorando em Microbiologia, realizando análise genômica de vírus no Laboratório de Virologia Clínica e Molecular no Instituto de Ciências Biomédicas – Universidade de São Paulo.
Referências
Bedford, T., Riley, S., Barr, I. G., Broor, S., Chadha, M., Cox, N. J., Daniels, R. S., Gunasekaran, C. P., Hurt, A. C., Kelso, A., Klimov, A., Lewis, N. S., Li, X., McCauley, J. W., Odagiri, T., Potdar, V., Rambaut, A., Shu, Y., Skepner, E., … Russell, C. A. (2015). Global circulation patterns of seasonal influenza viruses vary with antigenic drift. Nature, 523(7559), 217–220.
Krammer, F., Smith, G. J. D., Fouchier, R. A. M., Peiris, M., Kedzierska, K., Doherty, P. C., Palese, P., Shaw, M. L., Treanor, J., Webster, R. G., & García-Sastre, A. (2018). Influenza. Nature Reviews Disease Primers, 4(1), 1–21.
Neumann, G., & Kawaoka, Y. (2019). Predicting the Next Influenza Pandemics. Journal of Infectious Diseases, 219, S14–S20.
Petrova, V. N., & Russell, C. A. (2018). The evolution of seasonal influenza viruses. In Nature Reviews Microbiology (Vol. 16, Issue 1, pp. 47–60). Nature Publishing Group.
Potter, B. I., Kondor, R., Hadfield, J., Huddleston, J., Barnes, J., Rowe, T., Guo, L., Xu, X., Neher, R. A., Bedford, T., & Wentworth, D. E. (n.d.). Evolution and rapid spread of a reassortant A(H3N2) virus that predominated the 2017-2018 influenza season.
Wang, D., Zhu, W., Yang, L., & Shu, Y. (2020). The Epidemiology, Virology, and Pathogenicity of Human Infections with Avian Influenza Viruses. Cold Spring Harbor Perspectives in Medicine