Vacinologia reversa: a evolução dos imunizantes

A vacinologia reversa é a descoberta de antígenos para vacinas a partir de informações genômicas, sem o cultivo de patógenos em laboratório.
seringa e vacina - imagem ilustrativa

Para entendermos o que é vacinologia reversa primeiro precisamos entender o que é vacina. A nossa história começa em 1796 quando Edward Jenner desenvolveu a primeira vacina do mundo ocidental: a vacina da varíola.

Desde então as vacinas passaram a ser a forma mais econômica de controlar doenças infecciosas e até hoje permanece uma área ativa de pesquisa. A vacinologia convencional, consiste no isolamento do patógeno, inativação e injeção dos microrganismos (ou uma porção deles) nas pessoas.

Perceba que o desenvolvimento de vacinas ocorreu muito antes da descoberta da estrutura do DNA e do sequenciamento genômico. Com a evolução dessas novas tecnologias e a disponibilidade cada vez maior de dados genômicos surge a vacinologia reversa.

O que é vacinologia reversa?

A vacinologia reversa é o processo de descoberta de novos antígenos para vacinas a partir de informações genômicas. Se denomina “reverso” para destacar o fato de que o desenho da vacina foi possível sem a necessidade do cultivo de patógenos em laboratório.

Ou seja, na identificação de vacinas candidatas, utilizamos métodos e ferramentas computacionais para posterior experimentação. Essas ferramentas são necessárias para antecipar antígenos que podem induzir respostas protetoras, bem como as regiões precisas desse antígeno (os epítopos) que serão reconhecidos pelo sistema imunológico.

Existem alguns problemas da vacinologia clássica que podem ser resolvidos com a reversa. Entenda:

A princípio, os projetos de imunógenos presentes em uma vacina se resumem à apresentação de formas moleculares presentes na superfície do microrganismo que podem ser reconhecidas pelo nosso sistema imunológico. Porém, alguns patógenos possuem mecanismos de fuga evoluídos para escapar do reconhecimento imunológico. Existem ainda patógenos como o vírus da influenza, malária e HIV que dependem de um meio rico em anticorpos para sobreviver.

Nesses casos, estratégias clássicas não funcionam e é improvável que o façam no futuro. Precisamos de abordagens diferentes e muito mais precisas para a estimulação de anticorpos para o combate desses patógenos. A sinergia da informação imunológica com o sequenciamento do genoma completo (WGS) nos propõe soluções para esses desafios.

Agora, não levamos em consideração apenas a diversidade molecular dos antígenos alvo, mas também a importância dos níveis de expressão gênicas e como essas variáveis interagem com as variações genéticas do hospedeiro para gerar uma resposta imune.

No entanto, com novas tecnologias surgem novos desafios. As bactérias por exemplo, são patógenos complexos que possuem vários antígenos de proteínas. Quando utilizamos esses dados para a predição de epítopos, teremos muitos candidatos a imunizantes. O desafio é conseguir retirar dados úteis dessa abundância de informações obtidas.

Para simplificar o processo, alguns pesquisadores implementam parâmetros para identificar e priorizar fatores de virulência ou outros genes essenciais para a patogenicidade. Ao mesmo tempo, é necessário descartar epítopos que se assemelhem com nossas próprias proteínas para evitar uma reatividade cruzada.

Nos dias de hoje, as abordagens de vacinologia reversa tem se concentrado principalmente em patógenos bacterianos, para resolver um dos grandes problemas da medicina atual: a resistência aos antibióticos.

Todos sabemos da importância do desenvolvimento de antibióticos e como eles levaram a uma tremenda diminuição na mortalidade e morbidade associada a infecções bacterianas no passado. Porém, o surgimento de resistência aos antibióticos se apresenta como um problema urgente a ser resolvido. Nesse contexto, as vacinas surgem como a melhor opção para neutralizar o aumento de bactérias resistentes.

A vacinologia reversa identifica proteínas que podem ser usadas para formação de vacinas de subunidades. Essas vacinas possuem um ou mais componentes purificados no lugar do microrganismo completo (por isso o nome subunidade). Essas vacinas são capazes de induzir uma imunidade protetora sem o risco de efeitos colaterais causados por outras partes das bactérias.

As desvantagens potenciais das vacinas de subunidade são sua imunogenicidade moderada, meia-vida limitada in vivo e necessidade de adjuvantes para gerar respostas imunes robustas.

A primeira vacina de subunidade

A ideia de usar dados genômicos para identificar antígenos para vacina surgiu no final da década de 1990, para desenvolver uma vacina contra meningococo B. Foram cerca de 10 anos de pesquisa e experimentação até a vacina ter sido de fato licenciada.

De fato, o desenvolvimento de uma vacina meningocócica para proteção de doenças invasivas causadas por cepas de Neisseria meningitidis do grupo B (MenB) representa um marco na vacinologia.

O MenB, é uma das principais causas de infecção generalizada e meningite nas Américas, Europa, Ásia e Oceania. Porém, desenvolver uma vacina eficaz por meios convencionais sempre foi um problema, porque não era possível induzir uma resposta satisfatória de anticorpos.

Por que o MenB era um imunógeno tão pobre?

Cientistas finlandeses descobriram que moléculas na superfície capsular do MenB era idêntico à açucares encontrados na superfície de muitas células humanas, principalmente durante o desenvolvimento pré-natal do cérebro.

Portanto, induzir a indução de anticorpos para essas moléculas era perigoso pois poderiam danificar estruturas da superfície de células humanas. A partir disso, surgiu a ideia de minerar informações do genoma embora na época fosse algo complexo.

O genoma do microrganismo foi rastreado para identificar proteínas que fossem secretadas ou exportadas para a membrana externa. Além disso, a prospecção se estendeu para proteínas que podiam desempenhar papel de adesão às células do hospedeiro e mecanismos de virulência.

Foi uma tarefa verdadeiramente desafiadora pois o genoma do MenB consiste mais de 2 mil genes e apenas uma minoria expressa na superfície tinha algum potencial como antígeno. Vale relembrar que na época não existiam os softwares existentes atualmente que podem prever com precisão a localização celular de uma proteína e a sua função biológica.

No final das contas, as análises indicaram que nenhum componente seria suficiente para induzir uma ampla cobertura, portanto a vacina deveria conter vários antígenos. Os pesquisadores chegaram à conclusão de utilizar três antígenos: NHBA, fHbp e NadA, com base em sua atividade funcional.

vacinologia reversa
Vacinologia reversa aplicada a Neisseria meningitidis B. Com base na sequência completa do genoma foram encontrados 2158 candidatos potenciais a antígenos. A análise in silico resultou na seleção de 600 genes potencialmente codificadores de novas proteínas expostas à superfície. Estes genes foram amplificados e clonados em vetores de expressão de E. coli resultando em 350 proteínas recombinantes produzidas, purificadas e usadas com sucesso para imunizar camundongos. Os candidatos foram então selecionados com base em sua expressão de superfície e capacidade de induzir anticorpos bactericidas séricos. Os antígenos selecionados pela vacinologia reversa foram finalmente priorizados, com NadA, fHbp e NHBA como os três principais antígenos. Disponível em:
<https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fimmu.2019.00751/full>
  • NadA: Desempenha um papel na adesão e invasão celular. Está presente em quase todas as cepas hipervirulentas.
  • fHbp: Se liga ao fator H humano e aumenta a capacidade da bactéria de resistir à morte mediada pelo sistema complemento. Sua expressão permite a sobrevivência em sangue e soro humano ex vivo.
  • NHBA: Codifica uma lipoproteína com que se liga à heparina e está relacionada à sobrevivência de Neisseria no sangue humano. A região rica em arginina também desempenha um papel fundamental na adesão às células eucarióticas. Esse gene está presente em todos os grupos meningocócicos e em outras espécies de Neisseria.

A partir desses dados a Novartis Vaccines formulou a vacina de subunidade da marca Bexsero a partir dessas três proteínas, em conjunto com a PorA, uma proteína de superfície imunodominante, ou seja, pode induzir uma resposta imunológica mais forte.

Principais componentes da vacina 4CMenB. Representações esquemáticas das estruturas tridimensionais dos antígenos da vacina. Dentro das caixas são mostradas árvores filogenéticas que indicam a variabilidade da sequência dos antígenos fHbp, NHBA, NadA e PorA incluídos na vacina. Os pontos verdes indicam as variantes do antígeno presentes no 4CMenB.
Disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fimmu.2019.00751/ful

A vacina Bexsero foi aprovado e licenciado em 2013 na União Européia, Canadá e Austrália e introduzido no Programa Nacional de Imunização do Reino Unido a partir de setembro de 2015. Cada componente da vacina precisou satisfazer uma infinidade de condições regulatórias relacionadas à segurança e imunogenicidade da vacina.  

O desenvolvimento da Bexsero representa um trabalho pioneiro na área da vacinologia reversa mesmo que do início do projeto até a obtenção da licença tenha se passado mais de uma década.

Vacinologia Reversa 2.0

Já chegamos num momento em que a vacinologia reversa pode ser dividida em clássica e 2.0. A clássica, representa as ferramentas de bioinformática e foi marcada pelo desenvolvimento da vacina Bexsero.

A vacinologia 2.0 diz respeito ao isolamento e cultivo de anticorpos monoclonais de indivíduos para o desenvolvimento de uma vacina.

Vacinologia reversa 2.0. Normalmente, células B de memória de indivíduos soropositivos com altos títulos funcionais no soro são usados como uma fonte de anticorpos monoclonais humanos (mAbs) que são isolados por triagem funcional direta ou abordagens de seleção de antígeno. Os mAbs são investigados quanto à atividade protetora in vivo em modelos animais apropriados e são estudados para estudar a proteção na interação com seu patógeno alvo. Os imunógenos são então avaliados em modelos animais. Melhorias iterativas típicas são esperadas no projeto do imunógeno antes de avançar para as vacinas candidatas a serem testadas em humanos.
Disponível em: https://cshperspectives.cshlp.org/content/9/11/a030262.full.pdf

A partir dos anticorpos monoclonais e suas estruturas obtidas a partir de cristalografia de alta resolução das moléculas, podemos encontrar detalhes importantes de estrutura para desenvolvimento do imunizante.  

A Ideia é obter múltiplos anticorpos funcionais de diversos doadores para capturar a diversidade de formas e locais de combinação de anticorpos com regiões críticas do patógeno.

A vantagem desse processo é a capacidade de revelar características necessárias para direcionar a avaliação do antígeno. Uma outra vantagem é o combate ao mecanismo de fuga que os microrganismos possuem. Eles podem até escapar de um anticorpo monoclonal, mas não conseguirão escapar de vários ao mesmo tempo.

Novas perspectivas para os imunizantes

A vacinologia reversa atualmente é um campo amplo para abordagem de novas estratégias de desenvolvimento de vacinas. E já colhemos bons frutos dessa área como a vacina Bexsero. Com o avanço e a diminuição de custo das tecnologias, melhorias contínuas irão aumentar ainda mais a utilidade dessa abordagem.  

No futuro, espera-se que a compreensão das respostas imunes do patógeno e do hospedeiro conduza uma modelagem in silico altamente precisa para reduzir a quantidade de testes clínicos. Além disso, outros métodos podem ser utilizados como complemento para construir as vacinas de subunidade.

Assim, hoje, com a mudança de direção e ação na pesquisa de vacinas, capturada no termo vacinologia reversa, a única constante é a capacidade de inovação, de projetos existentes e futuros.

Sobre o autor:

Iasmin Moreira é graduanda em Biotecnologia pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente, é bolsista CNPq de Iniciação Científica, desenvolve análises genômicas para estudo do Transtorno do Espectro Autista. Também é membro da empresa júnior de Informática Biomédica da Universidade de São Paulo.

Referências

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  • BURTON, Dennis R. What are the most powerful immunogen design vaccine strategies? Reverse vaccinology 2.0 shows great promise. Cold Spring Harbor perspectives in biology, v. 9, n. 11, p. a030262, 2017.
  • MOXON, Richard; RECHE, Pedro A.; RAPPUOLI, Rino. Reverse vaccinology. Frontiers in immunology, v. 10, p. 2776, 2019.
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  • BAMBINI, Stefania et al. An analysis of the sequence variability of meningococcal fHbp, NadA and NHBA over a 50-year period in the Netherlands. PloS one, v. 8, n. 5, p. e65043, 2013.
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