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A diminuição ou ausência da produção de certas enzimas pode acarretar no acúmulo de substratos enzimáticos em órgãos, resultando na manifestação de Doenças do Armazenamento Lisossomal.
Ficou curioso? Continue a leitura! No texto abordamos a definição das Doenças do Armazenamento Lisossomal, a estrutura e função dos lisossomos, quais são algumas das doenças desse tipo e como elas podem ser diagnosticadas e tratadas.
O que são as Doenças do Armazenamento Lisossomal?
As Doenças do Armazenamento Lisossomal (LSD, do inglês Lysosomal Storage Diseases) são Erros Inatos do Metabolismo, caracterizadas pelo acúmulo excessivo de substratos em células de diversos órgãos devido à falhas lisossômicas.
Em outras palavras, essas doenças são causadas pela ausência ou deficiência de determinadas enzimas, ativadores enzimáticos e proteínas associadas. Dessa forma, os substratos se acumulam em órgãos e impactam o correto funcionamento destes.
Muitas das LSDs são causadas por anormalidades de um único gene, ou seja, possuem caráter monogênico. Além disso, quase 70% delas estão relacionadas com anormalidades enzimáticas, sendo o restante relacionado com ativadores enzimáticos ou proteínas associadas.
Até agora, aproximadamente setenta LSDs foram descritas. Assim como ocorre em outras doenças raras, as Doenças de Armazenamento Lisossomal são pouco frequentes quando observadas isoladamente.
Entretanto, quando observadas do ponto de vista cumulativo/populacional, é possível perceber que um alto número de pessoas é afetado por elas.
Globalmente, estes erros inatos do metabolismo afetam cerca de 1 a cada 5000-8000 pessoas, sendo que características geográficas e étnicas podem ter influência sobre esse número.
Anatomia e função dos lisossomos
Os lisossomos são organelas membranosas envolvidas em vários processos metabólicos. Mais de duzentas proteínas residentes nos lisossomos contribuem para a biologia e a função dessas organelas.
Os lisossomos têm três componentes principais:
- 1. Proteínas luminais que são hidrolases ácidas (enzimas) ou seus ativadores.
- 2. Proteínas integradas à membrana:
- 3. Proteínas associadas aos lisossomos.
Anormalidades em um ou mais componentes podem interromper as funções lisossômicas e resultar em LSDs.
Os lisossomos metabolizam uma gama de substratos com diferentes naturezas, o que inclui:
- Aminoácidos, peptídeos e proteínas;
- Açúcares, como glicosaminoglicanos, glicogênio e oligossacarídeos;
- Lipídeos, como esfingolipídeos e
- Ácidos nucleicos;
- Moléculas compostas, como lipopolissacarídeos, peptideoglicanos e glicoproteínas;
- Toxinas e substâncias estranhas.
Com isso, é possível notar que os lisossomos desempenham funções importantes na degradação e reciclagem do material extracelular por meio de endocitose e fagocitose, bem como do material intracelular por meio da autofagia.
A autofagia é essencial para manter a homeostase celular, gerenciando a depuração intracelular e a reciclagem de uma ampla gama de produtos químicos e componentes celulares, além de manter o metabolismo energético celular.
Como ocorre o processo de autofagia?
Os produtos da degradação lisossômica podem ser transportados para o aparelho de Golgi para reutilização ou liberados da célula via exocitose lisossômica.
Os lisossomos estão envolvidos em funções imunes inatas e adaptativas, ativação de receptores de reconhecimento de padrões, processamento e apresentação de antígenos, homeostase de células T, produção de anticorpos e indução de vários sinais imunes.
Como ocorre o armazenamento lisossomal?
O armazenamento lisossomal ocorre devido a mutações em genes específicos que codificam proteínas estruturais e enzimáticas. Essas mutações resultam na deficiência ou ausência das enzimas e outros elementos necessários para a atividade enzimática normal.
Como resultado, os substratos não são adequadamente catabolizados e se acumulam dentro dos lisossomos.
A nível celular, esse acúmulo de substratos leva a um aumento na concentração dessas substâncias, resultando em distúrbios no equilíbrio osmótico e levando a um estado de turgidez celular.
Consequentemente, isso pode levar à lise celular, onde a membrana celular se rompe devido à pressão interna excessiva.
A lise celular e o acúmulo contínuo de substâncias nos lisossomos afetam negativamente a função celular e podem levar a danos nos órgãos constituídos por essas células.
Com o tempo, a progressiva perda de função celular pode resultar em disfunção e falha de órgãos, contribuindo para os sintomas e complicações observados nas doenças de armazenamento lisossomal.


Causas das Doenças do Armazenamento Lisossomal
As LSD são doenças causadas por variantes genéticas patogênicas presentes em genes que codificam enzimas e outros elementos da atividade enzimática. Tais mutações podem resultar na transcrição de enzimas disfuncionais ou na ausência completa da transcrição das mesmas.
Sendo assim, as mutações do tipo nonsense, que levam à produção de proteínas truncadas ou não funcionais, geralmente resultam em desfechos mais graves do que as mutações missense, onde ocorre a substituição de um aminoácido específico na proteína.
No caso das mutações nonsense, a produção de enzimas disfuncionais é interrompida precocemente devido à inserção de um códon de parada prematuro no gene, o que compromete a síntese adequada da proteína.
Como resultado, a atividade enzimática necessária para o processamento normal dos substratos fica comprometida ou ausente.
Já as mutações missense resultam na substituição de um aminoácido por outro na sequência da proteína. Embora essas mutações possam alterar a estrutura ou a função da enzima, elas não levam necessariamente à interrupção completa da atividade enzimática.
Hereditariedade nas Doenças do Armazenamento Lisossomal
Como colocado anteriormente, muitas das LSD são doenças de caráter monogênico, entretanto, algumas delas são causadas a partir de mecanismos mais complexos, envolvendo múltiplos genes e fatores (caráter poligênico).
Adicionalmente, as Doenças do Armazenamento Lisossomal são resultado de mutações herdadas de geração em geração, a partir de diferentes mecanismos.
Na Doença de Fabry, por exemplo, as mutações são adquiridas por um padrão autossômico dominante, o que significa que um único alelo do gene mutado é capaz de fazer com que a doença se manifeste.
Por outro lado, a Doença de Tay-Sachs é uma LSD com padrão de herança autossômico recessivo, fazendo com que apenas indivíduos que receberam um par de alelos mutados de seus pais manifestem a doença.
No segundo caso, embora não haja a manifestação da doença quando o indivíduo recebe apenas um dos alelos disfuncionais, ele pode atuar como um portador e, caso tenha filhos com um parceiro também portador, seu filho possui uma chance de 25% de manifestar a doença.
Isso ilustra a importância do aconselhamento genético entre casais que desejam ter filhos, uma vez que com esta abordagem o médico é capaz de identificar riscos e sugerir opções, como a fertilização in-vitro, quando necessário.
Diagnóstico
Embora variem de doença para doença, os sintomas são causados por um déficit enzimático que prejudica a funcionalidade dos lisossomos.
Esses déficits estão ligados a uma variedade de manifestações clínicas que afetam muitos órgãos e sistemas e resultam em sintomas viscerais, oculares, hematológicos, esqueléticos e neurológicos. Frequentemente, são debilitantes, resultando em deficiências físicas e neurológicas progressivas.
Em geral, as apresentações de LSD variam amplamente, desde o início precoce (em alguns casos neonatal), a formas clínicas graves que frequentemente resultam na morte prematura dos pacientes, até fenótipos atenuados de início tardio.
Os testes de triagem são realizados apenas quando há suspeita clínica de um distúrbio de armazenamento lisossômico específico. Muitos LSDs compartilham características entre si e com outras anormalidades metabólicas não lisossômicas.
Existem vários procedimentos diagnósticos disponíveis, incluindo:
- Triagem urinária e sorológica;
- Ensaios enzimáticos;
- Testes genéticos para identificação de mutações.
O diagnóstico final deve basear-se nas evidências combinadas de informações clínicas, bioquímicas, radiológicas e genéticas.
Além disso, a triagem neonatal para LSDs ganhou popularidade e pode ser realizada para todas as doenças de armazenamento lisossômico.
O diagnóstico precoce é fundamental, pois a terapia, seja para a própria doença ou para sintomas relacionados, pode restringir consideravelmente o desenvolvimento e o impacto da doença a longo prazo.
O Sequenciamento de Nova Geração (NGS) fez uma contribuição significativa para a abordagem diagnóstica das LSDs. Essa tecnologia é empregada tanto em painel de genes direcionados quanto em abordagens baseadas no sequenciamento completo do exoma.


Doenças do armazenamento lisossomal
- Doença de Gaucher Tipos I, II e III: A doença de Gaucher é o tipo mais comum de distúrbio de depósito lisossomal. Existem três tipos distintos da doença com base na ausência (tipo I) ou presença e extensão de (tipos II e III) complicações neurológicas.
- Doença de Pompe: A doença de Pompe tem uma forma infantil e uma forma de início tardio. Os pacientes com a forma infantil são os mais gravemente afetados. A doença se apresenta nos primeiros dois a três meses com fraqueza muscular rapidamente progressiva, tônus muscular diminuído (hipotonia) e um tipo de doença cardíaca conhecida como cardiomiopatia hipertrófica. Problemas de alimentação e dificuldades respiratórias são comuns.
- Doença de Niemann-Pick Tipos A/B, C1 e C2: É um grupo de doenças hereditárias relacionadas ao metabolismo de gorduras. Certas características comuns a todos os tipos incluem aumento do fígado e baço. Crianças com doença de Niemann-Pick, tipos A ou C, também experimentam perda progressiva de habilidades motoras, dificuldades alimentares, dificuldades progressivas de aprendizagem e convulsões.
- Doenças de armazenamento de mucopolissacarídeos (Doença de Hurler, Hunter, Sanfilippo, Morquio, Maroteaux-Lamy e Sly): Essas doenças são causadas por distúrbios na degradação normal de carboidratos complexos conhecidos como mucopolissacarídeos. Todas têm certas características em comum, que incluem deformidades dos ossos e articulações.
Tratamento
Não há cura para os distúrbios de armazenamento lisossômico, e muitos ainda não têm terapia específica. No entanto, progressos na busca por terapias estão sendo feitos, e existem tratamentos disponíveis que melhoram significativamente a qualidade de vida das pessoas afetadas.
Algumas dessas estratégias terapêuticas são:
- Terapia de Reposição Enzimática (TRE): Consiste na administração intravenosa de enzimas recombinantes humanas. Elas melhoram o metabolismo do substrato acumulado substituindo a enzima deficiente/ausente. A TRE melhora a função cardíaca e pulmonar, reduz a carga de doenças nas vísceras e nos ossos e melhora o quadro sanguíneo. Pode melhorar a mobilidade articular e funcional, bem como a qualidade de vida, diminuindo a excreção de biomarcadores de doenças.
- Terapia Farmacológica por Chaperona: Chaperonas são pequenas moléculas que atravessam as membranas das organelas celulares, corrigem a estrutura terciária das enzimas e as tornam resistente à degradação.
- Terapia de Redução de Substrato (TRS): Algumas substâncias reduzem a formação de substratos inibindo a enzima que catalisa sua síntese. Seu início de ação e melhora clínica são mais lentos que a TRE.
- O Transporte Assistido por Substrato por Pequenas Moléculas (SMAST): é uma modalidade em que o substrato acumulado, por falta de transportador, é convertido em outro composto e transportado com facilidade para fora do lisossomo.
- Transplante de Células-Tronco Hematopoiéticas (TCTH): As células-tronco podem migrar para vários órgãos, se diferenciar em células de tecidos e fabricar continuamente a enzima deficiente. Também ajudam a minimizar a inflamação e danos nos tecidos. Como o enxerto leva tempo, o desempenho neurocognitivo pode diminuir logo após o transplante, e a TER pode ajudar a preencher a lacuna. Em vários LSDs, esse método sequencial de TRE-TCTH tornou-se o padrão de atendimento. Felizmente, a TRE não afeta os benefícios do transplante de células-tronco.
Referências
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