Índice
Pesquisadores utilizam a genômica para compreender os mecanismos moleculares possivelmente relacionados com diversas condições psiquiátricas. Por muito tempo, pressupôs-se que muitas dessas condições psiquiátricas não tinham uma etiologia biológica.
Após anos de pesquisa científica, tem sido descrito cada vez mais o papel de variantes genéticas, entre elas a mutação somática do código genético relacionadas com risco aumentado para doenças psiquiátricas como esquizofrenia, transtorno do espectro autista (TEA), depressão e transtorno bipolar.
Abordagem genômica das doenças psiquiátricas
Estudos de associação genômica em larga escala (GWAS – genome-wide association study) têm sido uma ferramenta importante no entendimento das bases genéticas das doenças psiquiátricas. Através dessa abordagem investigativa, foram identificados loci genômicos e variações no número de cópias (CNVs) associados com esquizofrenia ou TEA.
Apesar do fato das doenças psiquiátricas serem geralmente relacionadas com fatores ambientas, a mutação de novo e a mutação somática têm sido relacionadas com algumas dessas doenças.
Existem, basicamente, três momentos onde é possível que ocorram mutações de novo ou somáticas, e entender como esses mecanismos funcionam é fundamental para compreender as possíveis relações das mutações somáticas com as doenças psiquiátricas:
Mutação de novo que ocorre antes ou durante espermatogênese/oogênese
Durante o processo de espermatogênese/oogênese, podem ocorrer algumas mutações de novo, que segregam para o óvulo fecundado e são levadas para todos os tecidos daquele indivíduo.
Mutação somática nos estágios iniciais do desenvolvimento
Essas mutações ocorrem ainda no início do desenvolvimento embrionário, e são compartilhadas entre vários tecidos diferentes, mas não necessariamente todos os tecidos, já que o genoma em cada célula somática não será necessariamente o mesmo.
Mutações somáticas estão relacionadas com diversas doenças humanas, e existem hoje muitas evidências de que, pelo menos em parte, as mutações somáticas são responsáveis por doenças psiquiátricas.
Mutação somática em estágios avançados do desenvolvimento
São mutações que ocorrem após a diferenciação dos tecidos somáticos, geralmente limitadas a um tecido específico. Essas mutações podem ocorrem devido a influências ambientas, incluindo processos inflamatórios e estresse oxidativo, por exemplo.

A genômica dos cérebros de indivíduos com e sem doenças neuropsiquiátricas
A genética molecular tem fornecido informações sobre a hereditariedade de doenças psiquiátricas, e tem levado a alguns entendimentos importantes sobre a arquitetura genética das doenças psiquiátricas.
Uma célula progenitora neural durante o desenvolvimento embrionário tem em torno de 200-400 variantes de polimorfismo único (SNVs) somáticos, enquanto um neurônio de um cérebro maduro adulto tem em torno de 1000-2500 SNVs somáticas.
De fato, apesar de ainda estar em discussão, sabe-se que o processo de neurogênese está associado com uma taxa de mutações maior do que durante estágios iniciais da embriogênese.
A susceptibilidade mutacional observada em neurônios tem sido relacionada com a com a taxa de expressão gênica nessas células.
A mutação somática em neurônios maduros ocorrem na maioria das vezes durante a transcrição ativa de genes, enquanto mutações somáticas em neurônios embrionários são menos abundantes nas regiões genômicas com marcas nas histonas que caracterizam cérebros fetais e células tronco embrionárias.
Assim, o viés de mutações somáticas sobre os genes relacionados ao neurodesenvolvimento, em neurônios maduros, é indicativo da sua relevância para as doenças psiquiátricas.
Estudos investigando variações no número de cópias no genoma de indivíduos saudáveis, especificamente de neurônios, observaram CNVs de tamanhos variando de 2,9 a 75mb, e nessas CNVs somáticas, as deleções eram mais frequentes que as duplicações.
De fato, tem sido observado que o cérebro humano apresenta algumas aneuploidias somáticas, sendo estimado ao redor de 4% de aneuploidias somáticas em neurônios e células da glia, em comparação a 0,6% de aneuploidias somáticas em células sanguíneas.
Os estudos citados têm demonstrado a importância de investigar o cérebro humano das maneiras mais abrangentes possíveis. No entanto, é complicado pensar em uma maneira de estudar um cérebro saudável sem que ele seja afetado, ou que suas funções sejam comprometidas.
Somente compreendendo como funciona o cérebro “normal”, é que poderemos correlacionar achados somáticos considerados comuns com achados relacionados a doenças neuropsiquiátricas.


Mutação somática e mecanismos biológicos
Um dos mecanismos relacionados ao desenvolvimento de mutações somáticas no cérebro é a quebra de dupla fita do DNA, causada pelo aumento de atividades neurais no DNA genômico. Durante esse processo, podem ocorrer mutações em genes relacionados com atividade neural ou sináptica.
O acúmulo de stress oxidativo no DNA do cérebro humano, com o passar do tempo, resulta em alterações no DNA, especialmente nas mitocôndrias.
Esse acúmulo tem sido associado com a neurodegeneração, uma vez que o aumento de espécies reativas de oxigênio contribui para os danos ao DNA, e então, para a alteração da expressão de diversos genes importantes.
O dano ao DNA causado pelo acumulo de espécies reativas de oxigênio ocorre como consequência da incorporação de uma base de adenina complementar de maneira incorreta no lugar de uma citosina, e então, se o sistema de reparo de danos ao DNA não for capaz de recuperar o par original (citosina e guanina), haverá uma transversão C>A.
Doenças neurodegenerativas, malformações cerebrais e mutação somática
Dentre os genes relacionados com o aumento de risco para malformações cerebrais, têm sido identificadas mutações pontuais, especialmente em regiões cerebrais onde ocorrem essas malformações.
Um exemplo interessante de malformação cerebral causada por mutações somáticas é a displasia cortical com epilepsia. Foram identificadas diversas mutações no gene MTOR em regiões do cérebro de pacientes afetados por essa doença, por diferentes grupos, demonstrando o papel dessas mutações para as malformações cerebrais.
Mutações somáticas em genes relevantes também têm sido identificadas não apenas nas regiões afetadas do cérebro, mas também em tecidos periféricos.
Por exemplo, mutações no gene PIK3CA foram observadas no sangue ou saliva de pacientes com hemimegaencefalia, com frações alélicas abrangendo de 1 a 43%. As diversas mutações somáticas que tem sido descritas explicam, em grande parte, a patogênese de certas malformações cerebrais.
Pesquisa psiquiátrica e questões técnicas
O cérebro humano é um órgão extremamente complexo, de difícil acesso e que requer diversos cuidados para que sejam realizados estudos com precisão. Quando se busca por amostras, é importante considerar alguns aspectos como:
Seleção da região de interesse
Ainda não existe um critério definido para selecionar regiões do cérebro adequadas para análise de doenças neuropsiquiátricas, já que para muitas dessas doenças, ainda não há uma região definidamente relacionada.
Ainda, como o tecido cerebral pós-morte nem sempre está disponível, é importante considerar o uso de tecidos periféricos como o sangue para identificação de mutações somáticas.
Considerando que muitas dessas mutações acontecem no cérebro em desenvolvimento, ainda no período embrionário, possivelmente estarão presentes no tecido sanguíneo, levando-se em consideração que a frequência alélica pode estar aumentada devido a expansões clonais associadas à hematopoiese.
Estratégia de sequenciamento
A seleção da região alvo a ser estudada é um dos principais pontos. Se já se conhece o perfil genético para determinada doença, sequenciamentos que envolvam os genes alvos, como painéis específicos, são muito úteis.
No entanto, para doenças neuropsiquiátricas onde ainda não se conhece as mutações somáticas relacionadas, recomenda-se metodologias como WGS ou WES, que são mais amplas e capazes de detectas mutações ainda desconhecidas.
A escolha da plataforma de sequenciamento também é importante, e as novas tecnologias de sequenciamento de terceira geração, por sua vez, são as mais vantajosas para análises estruturais, pois são baseadas na leitura de longos fragmentos.
Detecção das alterações candidatas e validação
Para as doenças neurodegenerativas, espera-se frequências alélicas baixas devido a sua menor taxa proliferativa, então, é necessária uma abordagem bastante sensível para detecção de mutações somáticas no cérebro.
A profundidade do sequenciamento é fundamental para identificação de uma mutação somática, e quando detectada, essa ou essas mutações devem ser validadas por outras metodologias como, por exemplo, sequenciamento de Sanger.
Conclusão
Mutação somática em genes relacionados ao risco aumentado de diversas doenças neuropsiquiátricas têm sido identificadas nos últimos anos, graças ao avanço das tecnologias de seleção das células alvo e de sequenciamento de DNA.
Ainda existem poucos estudos que relacionem precisamente mutações somáticas com doenças neuropsiquiátricas.
No entanto, informações importantes têm sido discutidas como, por exemplo, o fato de que muitas dessas mutações são detectadas frequentemente em genes expressos especificamente no cérebro, indicando seu papel fundamental para o funcionamento normal e alterado deste tecido.
Ainda não é totalmente compreendido as bases biológicas do cérebro e a diversidade de tipos celulares que o compõe.
Para compreender e interpretar adequadamente os achados de mutação somática e sua relação com as doenças neuropsiquiátricas, é necessário que o panorama molecular do cérebro em desenvolvimento e do cérebro adulto seja cada vez melhor explorado, enfatizando a importância o papel de transformação que a medicina genômica tem demonstrado para o campo da neuropsiquiatria.
Os próximos anos presenciarão uma mudança fundamental no entendimento das doenças neuropsiquiátricas — A era da medicina personalizada está cada vez mais próxima e aplicável para a prática clínica.
Referências:
- Geschwind DH, Flint J. Genetics and genomics of psychiatric disease. Science. 349:1489–94. (2015)
- CNV and Schizophrenia Working Groups of the Psychiatric Genomics Consortium, Psychosis Endophenotypes International Consortium. Contribution of copy number variants to schizophrenia from a genome-wide study of 41,321 subjects. Nat Genet. 49:27–35. (2017)
- Kushima, I., Aleksic, B., Nakatochi, M. et al. High-resolution copy number variation analysis of schizophrenia in Japan. Mol Psychiatry 22, 430–440 (2017).