Vacina sobre mão

Vacinas de mRNA para doenças negligenciadas: desafios e perspectivas

Entenda como são desenvolvidas e como funcionam as vacinas de mRNA, que podem mudar o paradigma estabelecido pelas doenças negligenciadas.

O RNA (ácido ribonucleico) é uma molécula fundamental para a manutenção da vida em nosso planeta. 

Ela esteve presente no início da vida na Terra (ou uma molécula muito similar), gerando cópias de si mesma e dando instruções para outras moléculas iniciarem a síntese de compartimentos biológicos que hoje armazenam uma das principais entidades de estudo da ciência: o DNA. 

Quer saber mais sobre como funcionam as vacinas de mRNA? Acompanhe o texto! Nele, abordamos também o conceito de doenças negligenciadas e como as vacinas de mRNA podem mudar o paradigma estabelecido por estas doenças.

O que é o mRNA?

Os RNAs assumem diferentes formas e tamanhos, atuando em diversos processos biológicos importantes. Mas, talvez a principal forma conhecida seja o mRNA ou também conhecido como RNA mensageiro. 

O mRNA é uma molécula transitória que possui uma sequência específica que será traduzida e, por meio deste processo, sintetizar proteínas. Tal sequência reflete o que está “escrito” em nosso DNA. 

E, já que é uma estrutura tão essencial para a vida, por que não salvar vidas por meio de vacinas utilizando essa molécula?

Os primeiros insights sobre a possibilidade de uma molécula de mRNA atuar como um fármaco ou transportador de alguma droga surgiram no final da década de 80, quando Robert Malone conduziu seus primeiros experimentos em células lipídicas. 

Estes experimentos serviram de base para o que conhecemos hoje como o que há de mais moderno em termos vacinais, e que foram fundamentais para enfrentarmos uma das pandemias mais letais da história da humanidade, causada pelo vírus Sars-CoV-2. 

Mas como funcionam as vacinas de mRNA? Tomemos as vacinas contra a COVID-19 como exemplo.

Como são desenvolvidas as vacinas de mRNA?

De maneira geral, o mRNA é sintetizado com algumas modificações em relação ao RNA viral. As alterações visam inserir sequências específicas que, em nosso organismo, serão traduzidas em  estruturas presentes no coronavírus (em geral, a proteína spike) e que são reconhecidas pelo nosso sistema imune.

Com isso, elimina-se a necessidade de utilizar o genoma ou a partícula viral do próprio patógeno nas vacinas.

Por exemplo, na vacina contra a COVID-19 produzida pela Pfizer, a base nitrogenada, uridina (U) do mRNA, é substituída por uma pseudo-uridina (Ψ). Neste caso, essa modificação em específico atua na melhoria estrutural da molécula e contribui também para o melhor pareamento entre as bases nitrogenadas.

O segundo passo é conjugar a molécula sintetizada/modificada com uma segunda molécula, que irá carrear o mRNA até o citosol. 

Dadas as características físico-químicas do mRNA (ex: tamanho, carga, etc.) e do nossos sistemas de defesa, ele precisa ser conjugado com outra molécula para que possa permear a bicamada lipídica presente em nossas células e ao mesmo tempo ser “protegido” da degradação extracelular.

E, para isso, muitas das tecnologias de transporte são justamente baseadas nas observações de Malone: as partículas carreadoras possuem lipídios em sua composição.

Entretanto, existem outras tecnologias de transporte que são baseadas, por exemplo, na alteração do pH endossomal ou em nanopartículas. 

Como funcionam as vacinas de mRNA?

Após adentrar nossas células, o conjugado é degradado e o mRNA é liberado no meio intracelular. Em seguida, a sequência nucleotídica é traduzida por nossos ribossomos, produzindo os antígenos virais. 

Na sequência, estes antígenos são fagocitados e processados por Células Apresentadoras de Antígenos (como células dendríticas), que apresentarão parte dele (epítopo) para os Receptores de Células T (TCR).

Esse mecanismo de reconhecimento induz a geração de memória imunológica. Ou seja, caso haja um novo contato com o patógeno após a imunização, os leucócitos serão capazes de formar respostas imunológicas humorais (produção de anticorpos) e celulares (produção de interferons) que neutralizarão o invasor. 

As vacinas de mRNA introduzem sequências de mRNA nas células, que são então traduzidos em proteínas (célula da esquerda). Essas proteínas ativam o sistema imune através da apresentação de antígenos (Célula Apresentadora de Antígenos, na direita) pelas moléculas de classe I e II de MHC para reconhecimento pelas células T e B. A vacina de mRNA também aciona a resposta imune antiviral inata ao ligar o RNA ao TLR, levando à produção de interferon tipo I e à indução de genes estimulados por IFN-1 para a imunidade antiviral.

Doenças Tropicais Negligenciadas e vacinas de mRNA

As doenças tropicais negligenciadas referem-se a um grupo de infecções endêmicas causadas por parasitas ou patógenos presentes nos países em desenvolvimento que possuem populações de baixa renda. Tais doenças continuam sendo uma das principais causas de morbidade e mortalidade em todo mundo.

Exemplos de doenças negligenciadas são: 

  • Dengue, 
  • Zika, 
  • Leishmaniose, 
  • Raiva humana, 
  • Doença de Chagas. 

Somente no continente das Américas, tais doenças colocam em risco a vida de aproximadamente 200 milhões de indivíduos. 

O Brasil é uma das potências mundiais que mais sofrem com os casos reportados de algumas doenças negligenciadas. Estas doenças estão presentes principalmente em países em desenvolvimento.

Infelizmente, a população brasileira continua a se deparar com notícias como “Brasil bate recorde anual de mortes por dengue em 2022 (Fonte: CNN Brasil), ou a “a estimativa média de casos reportados de Leishmaniose no Brasil é em torno de 3.500” (Fonte: Ministério da Saúde).

Em contraponto com tais índices e, apesar do desenvolvimento científico e tecnológico não cessar diante de uma pandemia recente, ainda há falhas em políticas governamentais.

Tais falhas estão refletidas no que se diz respeito ao financiamento em diversas áreas do conhecimento que envolvam a produção integrada de vacinas avançadas para doenças negligenciadas. 

O financiamento não envolve somente recursos para o conhecimento teórico e pesquisas práticas sobre vacinas, mas também em locais adequados para o armazenamento, visto a “fragilidade” do conteúdo presente nestas seringas. Além do Brasil ser um país em desenvolvimento, também somos um país tropical onde altas temperaturas são registradas. 

Impacto das vacinas de mRNA

O impacto caso toda a população tivessem acesso às vacinas de mRNA, seja para doenças negligenciadas ou até mesmo o câncer, a qual também está em desenvolvimento, é imensurável. Mas, em termos gerais, o impacto seria na:

  • Especificidade: por serem desenvolvidas com a presença de moléculas de mRNA específicas para determinado antígeno; 
  • Eficácia e segurança tanto no desenvolvimento (ex: testes clínicos) quanto na aplicação em massa. 

A eficácia e segurança é oriunda de estudos de longa data sobre vacinas de mRNA. Além disso, outro diferencial das destas vacinas é que na sua composição não é utilizado o vírus atenuado. 

Vacinas atenuadas são aquelas que utilizam o vírus, porém com a virulência reduzida a níveis seguros para serem aplicadas. Assim, a presença do vírus é necessária para induzir a resposta imunológica. 

Diversas vacinas como por exemplo as vacinas para a gripe, poliomielite, etc. utilizam esse mecanismo e se mostraram seguras e, se tratando da poliomielite, a vacinação utilizando este método conseguiu erradicar a doença do país, por meio de uma campanha iniciada em 1980.

Melhorias na saúde de população de baixa renda

A tecnologia das vacinas de mRNA poderia ser extrapolada para diversas outras doenças. 

Tais doenças são as que infectam principalmente indivíduos de baixa renda que estão em situações de vulnerabilidade imunológica (ex: pacientes imunocomprometidos) ou demográfica. 

Assim, dada a produção dessas vacinas juntamente com uma política nacional de vacinação adequada que consiga incorporar a aplicação dessas vacinas em âmbito nacional, poderia haver uma grande melhora na saúde em diversos quesitos, até mesmo na saúde mental. 

Além disso, com a aplicação em massa e, mesmo que haja indivíduos que não queiram se vacinar, os mesmos seriam beneficiados pela imunidade de rebanho nestas localidades.

Futuro para as vacinas negligenciadas 

Devido a implementação positiva de vacinas de mRNA durante a pandemia de COVID-19, indústrias farmacêuticas como a BioNTech e Pfizer já estão produzindo e iniciando testes para 2023 contra doenças negligenciadas, como por exemplo a malária. 

Tratando-se da malária, tal enfermidade foi apontada como uma das principais infecções que acometeram o povo Yanomami, uma tribo indígena localizada em Roraima. Na contagem, houveram cerca de 30 mil indígenas infectados e está sendo considerada uma tragédia humanitária. 

Conseguem imaginar o impacto de vacinas de alta tecnologia à disposição dessa tribo? 

Dado os efeitos positivos esperados nos testes, é possível que haja o desenvolvimento para as outras enfermidades. 

Conclusão 

Em resumo do tema abordado, as vacinas que são baseadas em mRNA podem e estão se tornando uma ferramenta extraordinária para a luta contra doenças emergentes e negligenciadas. 

E, essa luta, não é apenas científica ou pela saúde. É uma luta social por um direito fundamental, o qual está assegurado na lista de Direitos Humanos e na Constituição Federal de 1988, de que todos merecem ter acesso à saúde digna e de qualidade (e, se possível, gratuita). 

Referências

Naddaf, M. The science events to watch for in 2023. Nature. December, 2022. 

Jain, S. Messenger RNA-based vaccines: Past, present, and future directions in the context of the COVID-19 pandemic. Adv Drug Deliv Rev. 2021. 

Ministério da Saúde. Situação epidemiológica da Leishmaniose Visceral. 2022. Acesso em: 20 de Janeiro de 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/com-987-mortes-por-dengue-em-2022-brasil-bate-recorde-em-letalidade-anual/

Homma, A. Vacinas para doenças negligenciadas e emergentes no Brasil até 2030: o “vale da morte” e oportunidades para PD&I na Vacinologia 4.0. Cadernos de Saúde Pública. 2020.

Morais, P. The Critical Contribution of Pseudouridine to mRNA COVID-19 Vaccines. The Critical Contribution of Pseudouridine to mRNA COVID-19 Vaccines. Front. Cell Dev. Biol.v.9. 2021. 

Nance, K. Modifications in an Emergency: The Role of N1-Methylpseudouridine in COVID-19 Vaccines. ACS Cent. Sci. p.748-756. 2021.

Higgs & Lehman. The RNA World: molecular cooperation at the origins of life. Nature Genetics Reviews. v. 16. p.7-17. 2015. 

Fantástico. Malária, pneumonia, desnutrição, contaminação por mercúrio: Fantástico mostra a tragédia humanitária na Terra Indígena Yanomani. 29 de Janeiro de 2023. Disponível em <https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2023/01/29/malaria-pneumonia-desnutricao-contaminacao-por-mercurio-fantastico-mostra-a-tragedia-humanitaria-na-terra-indigena-yanomami.ghtml>. Acesso em: 2 de fev. de 2023. 

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