Vírus fósseis e seu impacto na genômica humana

Vírus fósseis são regiões no genoma de eucariotos de origem viral. Entenda como os vírus adentraram o genoma e interferem no DNA.
virus fosseis
virus fosseis

Você sabia que nosso genoma carrega marcas de infecções virais ancestrais? Com os avanços da genômica nas últimas duas décadas, foi possível entender a história evolutiva de diferentes genes e elementos genéticos, como transposons e vírus fósseis.

Antes de mais nada, a paleovirologia é a área que estuda a origem e função dos vírus fósseis. Quer entender mais sobre este tema? Então siga a leitura do nosso texto.

O que são os vírus e sua origem

Vírus são entidades biológicas sem metabolismo próprio, ou para alguns autores, são organismos codificadores de capsídeos. As hipóteses mais atuais postulam que os vírus podem ter sido um dos primeiros grupos de “organismos” no planeta Terra. As aspas em organismos são necessárias, uma vez que considerar vírus como organismos vivos ainda gera debates calorosos no meio científico.

A diversidade de vírus que existe hoje é explicada por diferentes mecanismos evolutivos de obtenção e perda de genes. Assim, aplica-se uma lógica de permitir aos vírus vencerem, ou revidarem, as defesas de seus hospedeiros, em uma guerra armamentista.

Estes processos evolutivos originaram vírus que infectam bactérias, arqueas, plantas, fungos, diferentes tipos de animais e até outros vírus. Estes processos evolutivos resultam em vírus que precisam se integrar no genoma humano, como o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV, em Inglês), por exemplo.

No entanto, estes processos evolutivos não resultaram apenas na captura de genes por parte dos vírus, mas também na captura de vírus pelos genomas dos seus hospedeiros, originando o que conhecemos hoje como vírus fósseis.

O que são vírus fósseis?

Vírus fósseis são regiões no genoma de eucariotos – em procariotos são conhecidos como prófagos – de origem viral, ou seja, são regiões de transferência gênica horizontal, de um vírus para seu hospedeiro.

Estes vírus podem ser representados por um gene, por um fragmento de um gene, ou por uma região do genoma viral que não codifica uma proteína. 

Por que são chamados de vírus fósseis?

Bem, os vírus não possuem estruturas físicas que permitam processos de fossilização. Porém, sabe-se hoje que mutações em vírus podem ocorrer em uma taxa até 1 milhão de vezes maior que mutações em genomas de eucariotos.

Uma vez que um vírus seja integrado no genoma do seu hospedeiro, a versão integrada passa a mutar na taxa do genoma eucarioto, enquanto a versão circulante passa a mutar na taxa natural para o grupo viral

Ao longo dos anos, o vírus circulante acumulará mutações que o vírus endógeno não possui, ou seja, o vírus endogenizado representa uma versão do vírus ancestral, ou, um vírus fóssil. E a área que estuda estes elementos foi então batizada de Paleovirologia.

Estes elementos genéticos são gerados por um processo descrito como endogenização viral, que resulta em um vírus endógeno – um termo mais acadêmico para definir vírus fosseis – e pode ocorrer de diferentes maneiras.

Como os vírus adentraram o genoma do seu hospedeiro?

Existem três principais eventos que resultam em um vírus endógeno:

Recombinação não-homóloga

Ocorre quando o DNA viral – seja o próprio DNA de vírus de DNA, ou o vDNA retrotranscrito de vírus de RNA – é integrado ao DNA cromossômico do hospedeiro em regiões de quebra cromossômica.

Interação com retrotransposons

Ocorre quando retrotransposons ativos no genoma do hospedeiro retro transcrevem o RNA viral em DNA e o integram no genoma hospedeiro, geralmente em regiões conhecidas como clusters de piRNAs.

Integração retroviral

Ocorre no próprio ciclo de replicação dos retrovírus, na etapa conhecida como ciclo lisogênico, onde o genoma do retrovírus é integrado no genoma do seu hospedeiro.

A fixação do Elemento Viral Endógeno (EVE) em uma população só ocorrerá caso a integração seja em células germinativas; seu hospedeiro – e sua futura prole – tenha sucesso reprodutivo; que processos epigenéticos não removam a região integrada; e que processos evolutivos tradicionais – não epigenéticos – não resultem na degeneração do novo elemento genético.

Como os vírus se integram ao genoma humano em esquema
Estratégias de replicação viral, elementos virais endógenos e o registro fóssil genômico. Adaptado de: Katzourakis A, Gifford RJ (2010)

A Covid-19 pode interferir em nosso genoma?

Ainda não temos estudos mostrando a integração de regiões do SARS-CoV-2 – o agente etiológico da Covid-19 – em genomas humanos. Porém, um estudo Brasileiro indica que a infecção por SARS-CoV-2 pode desencadear um aumento nos níveis de um retrovírus endógeno humano, conhecido como HERV-K, e que o aumento dos níveis de HERV-K ativos pode estar associado com quadros mais severos da doença.

A identificação de regiões virais no genoma hospedeiro é conhecida como Paleovirologia Direta, porém, podemos identificar infecções virais ancestrais sem detectar necessariamente vírus fósseis, na Paleovirologia Indireta.

A Paleovirologia Indireta analisa marcadores moleculares de resposta a infecções virais, como genes que codificam proteínas que interagem com vírus (VIPs, em Inglês), por exemplo. 

Um estudo recente, com genomas de diferentes populações humanas, demonstra que marcadores de VIPs relacionados a família viral Coronaviridae — a família do SARS-CoV-2 — sofreram uma pressão seletiva não esperada acerca de 20.000 anos atrás em populações na região da Ásia oriental, indicando uma possível epidemia causada por um vírus ancestral da família Coronaviridae há 20.000 anos atrás nesta população.

Quanto tempo os vírus fósseis ficam em nosso organismo

Após o processo de endogenização viral, o vírus endógeno permanecerá no genoma da espécie hospedeira até o momento da extinção dessa espécie, ou até o momento da degeneração do vírus fóssil por processos evolutivos.

O genoma humano possui diferentes grupos de vírus fósseis, o grupo mais antigo – descrito até o momento – é conhecido como Maverick, e data de cerca de 105 milhões de anos. A hipótese inicial para essa permanência é que esses vírus fósseis auxiliaram na resposta antiviral contra os Mavericks ancestrais que infectavam diferentes grupos de mamíferos

Outro grupo de vírus fósseis, conhecido como ERVs (Endogenous Retroviruses em Inglês) parecem estar no nosso genoma há cerca de 45 milhões de anos e representam um dos temas mais interessantes da paleovirologia: a origem da placenta.

Diferentes estudos indicam que a formação da placenta está relacionada à integração de diferentes retrovírus, em diferentes grupos de mamíferos.

Alguns genes de envelope viral – estrutura que envolve a molécula viral de alguns grupos virais — conhecidos como sincitinas (Syncytins em Inglês) são responsáveis por gerar um efeito nas células infectadas conhecido como formação de sincícios, onde ocorre a fusão de várias células.

Estes mesmos genes parecem ter sido integrados nos genomas de mamíferos, e recrutados para codificar proteínas que compõem a placenta.

Este evento ainda não foi completamente elucidado, uma vez que as hipóteses com maior embasamento científico indicam diferentes eventos de endogenização destes genes virais, em diferentes grupos de mamíferos. 

Em primatas no geral, os eventos de integração destes genes ocorreram primeiramente cerca de 45 milhões de anos atrás, resultando hoje no que conhecemos como o gene Sincitina-2. Um segundo evento teria ocorrido cerca de 25 milhões de anos atrás, no grupo taxonômico Catarrhini, que engloba símios e macacos do velho mundo, resultando no que conhecemos como o gene Sincitina-1.

De acordo com os estudos mais atuais, podemos considerar então que o genoma humano engloba vírus fósseis datados de cerca de 105, 45 e 25 milhões de anos.

Conclusão

Processos co-evolutivos entre vírus e seus hospedeiros podem gerar vírus endógenos, os quais são elementos genéticos originados pela integração do material genético viral no genoma hospedeiro.

Diferentes eventos a nível molecular podem acarretar na origem de vírus endógenos e, ainda, não foram identificadas regiões do genoma do SARS-CoV-2 integradas no genoma humano, porém, estudos de Paleovirologia Indireta indicam a ocorrência de uma epidemia por vírus na família Coronaviridae há cerca de 20.000 anos.

A endogenização viral pode resultar em novas características que contribuem para o fitness de diferentes organismos, como a formação da placenta em mamíferos, por exemplo, mas também pode resultar em danos para o hospedeiro, como o aumento da atividade de HERV-K em pacientes com Covid-19.

Devido a ausência de padrões no que diz respeito a sítios de integração, estudos envolvendo o sequenciamento do genoma completo (WGS) de diferentes populações humanas são necessários para entender possíveis eventos de integração e fixação de vírus não-retrovirais atualmente circulantes, como Dengue, Zika, HIV, SARS-CoV-2 e MonkeyPox, por exemplo, em humanos.

Referências

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